sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Tiros pela cidade: como o disparo de armas de fogo nas ruas se tornou banal na nossa sociedade?

Estava em casa hoje. Eu na cozinha, meu filho na sala, quando escuto tiros na rua. Corro desesperado para saber se está tudo bem com meu filho. Tudo bem, parece que a barbárie lá de fora não atingiu minha casa. Era por volta das 16h.

Na tensão, não consigo contar o número de tiros. Não sei se foram três, quatro ou cinco. Escuto um homem gritando lá fora. “Calma, calma. Sou policial. Estou fazendo segurança aqui da van e o vagabundo queria me roubar!”

Pela varanda vejo a tal van branca saindo da rua. Tento ver a placa mas não consigo. A van sai de marcha ré e segue pela rua. Ligo para minha esposa, que estava na rua, para saber onde ela está. Ela diz que acabou de entrar na garagem.

“Meu Deus!”, penso. “Ela acabou de passar pela linha de tiro. Não sei se pouquíssimos minutos antes ou pouquíssimos minutos depois”. A entrada da minha garagem fica bem na linha de tiro entre o suposto “policial” e o suposto “vagabundo” contra o qual ele atirou. Poucos segundos garantiram que minha esposa chegasse ilesa em casa.

Ela não viu, nem ouviu os tiros. Possivelmente, ela chegou poucos minutos (ou segundos) depois do tiroteio. Minha esposa chega bem em casa, pela graça de Deus.

Desço e converso com as pessoas que viram tudo. O homem sacou uma pistola e atirou no suposto ladrão. Depois, ele e as pessoas que estavam com ele, recolheram as cápsulas deflagradas do chão e taparam a placa do veículo com um adesivo, antes de saírem do local do crime.

Pouco depois fico sabendo que o tal bandido foi atingido e está caído na frente de uma escola, que fica um pouco mais acima, na mesma rua. Pedestres chamam os bombeiros e eu ligo para a polícia. Passa-se meia hora e ninguém chega.

Saio pelas ruas do bairro e procuro uma patrulha. É nessas horas que você percebe como é difícil achar um policial militar, quando se precisa deles. Acho um carro parado há cinco quarteirões e os comunico sobre a ocorrência.

Volto ao local onde a vítima está caída. Os bombeiros e a polícia já estão lá, cerca de 50 minutos depois do tiroteio. O rapaz ferido já havia sido recolhido à ambulância. Ouço algumas pessoas comentando que os bombeiros não precisavam tê-lo socorrido e podiam tê-lo deixado sangrando no chão.

Vou até a janela da patrulha e digo aos policiais que meu prédio tem câmeras que podem ter capturado a ocorrência. Também relato o que ouvi do atirador. (que ele era policial e estava fazendo segurança da van). Os PMs parecem pouco interessados no que eu tenho a dizer. Um deles diz apenas: “Quer saber? Acho que ele [o cara que atirou] não está errado, não. O outro [que foi baleado] disse que só estava pedindo dinheiro. Se ele tivesse só pedindo dinheiro, o cara não teria dado cinco tiros nele”.

Eu respondo: “A questão não é essa. O cara [que levou o tiro] está errado de tentar roubar [se é que ele estava mesmo]. Mas o outro está mais errado ainda de dar cinco tiros numa rua dessas. Tem uma creche e uma escola aqui nessa rua [o tiro foi dado na direção dessas duas unidades escolares]. Podia ter atingido uma criança. Por pouco minha esposa não foi atingida”.

O outro diz: “Tá tudo muito banalizado!”.

Eu respondo: “Independente dele ser policial ou não [e se ele for policial está duplamente errado, em dar tiro a esmo e em fazer segurança ilegalmente]. Ele não tem que sair atirando no meio da rua”.

O primeiro policial faz uma cara de bunda, como se não estivesse com paciência para nada.

Digo apenas: “Faz o seguinte. Quando vocês forem registrar o caso na delegacia, digam apenas que meu prédio tem câmeras que podem ter registrado a ação. Estamos a disposição para ceder as imagens, se for preciso”.

O policial (da cara de bunda) diz: “Olha, isso não vai dar em nada, não. Mas me diz teu nome e teu telefone”.

Digo meu número e me despeço dos policiais.

Volto para casa desiludido. Houve uma tentativa de homicídio (ninguém reage a um assalto em que o bandido não está armado com cinco tiros), o risco de incolumidade física de pessoas inocentes (e crianças), o uso indevido de arma de fogo e a destruição da cena do crime. Tudo isso possivelmente envolvendo um agente da lei. E os PMs estava tratando como se fosse uma ocorrência de reclamação por excesso de barulho ou briga de vizinhos.

Mas também entendi o desinteresse dos policiais. Todos os dias, centenas de tiros são disparados na cidade do Rio de Janeiro. Grande parte deles pela própria polícia (de serviço ou de folga). Não dá para ficar investigando cada vez que alguém aperta uma gatilho numa rua da cidade. Mesmo que esse tiro atinja alguém.

Ao mesmo tempo, pelo meu ponto de vista, é justamente porque ninguém investiga os disparos de armas de fogo no Rio de Janeiro (e no Brasil) que essa atitude tornou-se tão banal. É muito fácil puxar meu revólver ou pistola da cintura e brincar de bangue-bangue nas ruas.

Não é possível dizer em que momento ficamos tão bestializados a ponto de aceitar essa situação de caos social como um fato corriqueiro em nossas vidas. Em que momento das nossas vidas aceitamos que um policial diga “bem feito para esse vagabundo. Se ele tentou roubar alguém. Mereceu levar cinco tiros”.

Não vou entrar no mérito de que há um limite para a legítima defesa e que no Brasil não existe pena de morte. E ainda que existisse (como nos EUA ou no Irã), o réu teria que passar por um julgamento para ser condenado.

Só pergunto: e as crianças nas ruas? E nossas esposas, pais, irmãos, filhos, sobrinhos que nada tem a ver com o “vagabundo” que teve o azar de assaltar outro “vagabundo” mais poderoso que ele?

Será uma simples fatalidade se nossos entes queridos forem atingidos por uma bala perdida? Terá sido o acaso, como uma amêndoa que desaba sobre o capô de nossos carros, um cocô de pombo que cai nas nossas cabeças ou um banho de água suja num ponto de ônibus num dia de chuva?

É normal termos que nos preocupar com alguém, que, a qualquer momento, pode decidir se defender de um assalto e dar uma saraivada de tiros na rua, acabando com nossas vidas?

No Rio de Janeiro, centenas de pessoas morrem anualmente vítimas de balas perdidas. Outras milhares (algo em torno de 5 a 6 mil) são deliberadamente assassinadas, porque algumas pessoas se arrogam do direito de ter mais direito do que as outras e extinguir vidas.

E tudo isso ocorre perante uma polícia impassível. Assoberbada por crimes que ela mesmo alimenta com sua inépcia (preventiva, repressiva e investigativa). Algo em torno de apenas 5% a 20% dos casos de letalidade violenta são esclarecidos pelas polícias do Brasil.

Arrisco-me a dizer que de 60% a 70% desses casos sequer são investigados. São registros de ocorrência que nem saem das gavetas da “investigação preliminar” (nome pomposo para a seção da polícia que digita sua ocorrência e pede para você assinar seu testemunho) da Polícia Civil.

Se formos considerar também os casos de balas perdidas e de tentativas de homicídio, o número de investigações é ainda menor.

Nos casos de auto de resistência, quando a polícia assassina alguém em suposta legítima defesa, o índice de investigação é mais pífio ainda.

Os milhares de tiros que são disparados nas cidades mas que, por puro acaso, não atingem ninguém, então, sequer merecem uma “investigação preliminar”.

Como acabar com isso? Autoridades policiais, por favor, comecem a se incomodar com tiros que são dados a esmo na cidade. Em um primeiro momento, vocês terão um trabalho infinito de levar esses casos adiante. Parecerá impossível e será mesmo impossível.

Mas só se incomodando com essa situação, vocês vão conseguir reduzir as mortes por balas perdidas, as tentativas de homicídio e os homicídios no país. E, dentro de cinco a dez anos, vocês terão menos trabalho a fazer, porque haverá menos crimes a solucionar. E quanto menos crime para solucionar, mas fácil será solucionar os crimes esporádicos que ocorrerem.

Aos policiais que saem dando tiro pelas ruas, peço que parem de fazer isso. Pode parecer óbvio, mas quanto menos vocês fizerem isso, menos trabalho vocês vão ter, menos gente vai ficar ferida e menos gente vai morrer. Seus filhos e netos poderão andar mais tranquilos pelas ruas, tendo que se preocupar apenas com amêndoas, cocôs de pombo e banhos de lama, sem o risco de uma bala perdida achar algum órgão vital seu e encerrar suas vidas.

Ps.: Aposto que jamais serei procurado pela Polícia Civil para solicitar as imagens da câmera do meu edifício.