quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Tráfico de armas: O mito do fechamento das fronteiras

Nesta quinta-feira (19), acompanhei uma reportagem "exclusiva" da TV Globo que pretendia mostrar as "rotas" de armas que abastecem a criminalidade no Rio de Janeiro. Com grande alarde, a TV Globo mostrava que as armas entram no Brasil por meio do Paraná e Mato Grosso do Sul.

Bem, sobre a matéria, só tenho a dizer que não há nada de novo nela. Fiz uma semelhante, dez anos atrás e antes de mim vários já tinham feito. Paraná e Mato Grosso do Sul, que fazem fronteira com Paraguai e Bolívia (caso do MS), sempre foram os principais pontos de entrada de drogas e de armas estrangeiras no país.

Mas a reportagem foi apenas um gancho para levantar uma questão crucial na segurança pública. Os mitos perpetrados pela polícia e pela imprensa, que são repetidos à exaustão e acabam virando verdades absolutas (ainda que não se sustentem por fatos).

Um dos mitos propagados pela imprensa é que é necessário fechar as fronteiras do país (principalmente com as forças armadas. Sempre elas!), porque as drogas e as armas vêm do exterior. Logo, se as forças armadas conseguirem fazer um bom trabalho nas fronteiras brasileiras, o problema estará resolvido: as facções criminosas brasileiras não terão nem drogas nem armas.

A sustentação desse mito encontra alguns problemas na vida real:

1) Em primeiro lugar, todos sabemos que a maioria das armas usadas pelos criminosos são brasileiras. Um levantamento do Instituto Sou da Paz mostrou que 60% das armas apreendidas pela polícia fluminense são fabricadas no Brasil. Logo, elas não precisam passar por fronteira nenhuma. Elas são feitas aqui, vendidas aqui e passadas para a criminalidade aqui. Como isso acontece? De várias formas: através do extravio de arsenais oficiais e de firmas de segurança; da venda de armas usadas por policiais, colecionadores, atiradores etc.; através do furto de armas legais; através do comércio de armas produzidas muitos anos atrás, quando não havia muito controle sobre esse comércio; e por aí vai. A proporção de munição nacional é praticamente a mesma.

2) Os outros 40% das armas não necessariamente são importadas diretamente pelos criminosos. Muitas delas entram legalmente no Brasil e são, através dos mesmos caminhos descritos acima, desviadas posteriormente para os criminosos.

3) E os fuzis? Os fuzis representam menos de 5% das armas apreendidas no Rio de Janeiro, um dos estados onde mais se apreendem fuzis, segundo os últimos dados divulgados pelo Instituto de Segurança Pública. A maioria deles é, sim, estrangeira (apesar de alguns apreendidos serem da Imbel). E, sim, a maioria deles é importada diretamente pelos criminosos, até porque sua comercialização legal é muito restrita.

4) Se fecharmos as fronteiras, os fuzis deixarão de entrar? Bem, quanto a isso, terei que dividir a resposta em alguns pontos:

4.a) Sinto desapontá-lo, mas ainda que você coloque 100 mil soldados patrulhando as fronteiras do país, será impossível impedir a entrada de um objeto que mede menos de um metro e que pesa menos de 5 kg. Patrulhar fronteiras com forças armadas é custoso e completamente inócuo.

4.b) As autoridades usam justamente o argumento de que 15 mil km de fronteiras são impossíveis de patrulhar. Concordo e discordo. Por mais que seja possível traficar drogas e armas por meio da floresta etc, os traficantes sempre vão preferir as cidades, porque a logística é mais fácil. Mas mesmo as cidades é difícil de patrulhar. Várias cidades brasileiras simplesmente se aglomeram com as estrangeiras. Em Pedro Juan Caballero, no Paraguai, por exemplo, basta atravessar a rua para se chegar a Ponta Porã, no Brasil. Então também é impossível fechar essas fronteiras, a não ser que se ergam barreiras e se limite o tráfico de carros e pessoas entre esses países. Fazer isso sem inteligência é como... deixa me ver... é como... tentar encontrar um fuzil em 15 mil km de fronteiras (ou em pelo menos ruas de 40 cidades).

4.b) A forma mais eficaz de combater o tráfico internacional por meio de fronteira seca, é monitorar os principais fornecedores nos países vizinhos e os compradores brasileiros e já interceptar os carregamentos

4.a) Nem todos fuzis entram pelos 15 mil quilômetros de fronteira seca. Muitos entram por contêineres através dos portos e também através de carga aérea. Tem armas que entram até pelos correios.

4.b) Logo, mesmo que se feche a fronteira seca, as armas continuarão entrando por meio dos portos e aeroportos. Imagine a quantidade de produtos estrangeiros que entram num país com 200 milhões de habitantes diariamente. Agora imagina interceptar produtos ilegais (muitas vezes ocultos dentro de produtos "legais") nessa infinitude de carregamentos internacionais. Interceptá-las sem inteligência é o mesmo que tentar fazer isso na fronteira seca. Agora, some-se a isso, a corrupção sistêmica que atinge os funcionários da Receita Federal e da Polícia Federal nesses pontos de entrada.

Enfim, o problema é um pouco mais complexo do que simplesmente botar Exército para fazer um pente-fino na fronteira.

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

A legalização das drogas e a redução da criminalidade

Logo que comecei esse blog em 2010, eu me posicionei abertamente pela legalização do uso das drogas (de todas elas, sem exceção) e a regulamentação de sua venda. Naquela ocasião, defendi que a medida era essencial para se reduzir a violência atrelada ao tráfico de drogas no país.

Ontem eu li no Jornal O Globo, uma enquete com oito especialistas que responderam a seguinte pergunta: "A legalização das drogas diminuiria a violência no Rio?".

Quatro deles respondiam que sim e davam suas razões e quatro respondiam que não e explicavam seus motivos. A iniciativa do Globo de levantar a questão é de suma importância para se fomentar um debate acerca de alternativas à guerra às drogas.

Eu continuo acreditando em meu posicionamento de 2010 e defendendo a legalização de todas as drogas, acreditando que não cabe ao Estado regular o que cada cidadão adulto deve consumir, desde que isso não afete o coletivo da sociedade.

E também continuo acreditando que haverá, sim, uma redução da violência.

Hoje, no entanto, tenho muitas dúvidas sobre a amplitude dessa redução e sobre o impacto que essa medida teria na dinâmica criminal do Rio de Janeiro, que envolve o controle territorial armado ilegal. Acredito que provavelmente o controle territorial armado continuaria, já que as quadrilhas hoje envolvidas com o tráfico arrumariam outra forma de exploração ilegal do território (funcionando como as milícias).

Vamos analisar a situação ponto a ponto.

1) A legalização das drogas acabaria com o tráfico?
Provavelmente, não. Mas enfraqueceria de forma absurda o poder das facções criminosas. A regulamentação de setores econômicos não é capaz de acabar com a informalidade. Provavelmente, a droga ilegal (não regulamentada) continuaria sendo vendida mais barata e com uma qualidade inferior. Mas esse comércio informal representaria apenas uma parte pequena do comércio de drogas e não movimentaria mais milhões de reais. Com menos dinheiro nas mãos, os criminosos teriam menos poder, menos armas e menos capacidade de corromper agentes do Estado.

2) A legalização reduziria a violência relacionada ao tráfico?
Certamente. O volume de drogas, dinheiro e armas seria bem menor. As disputas tenderiam a ser menos sangrentas. As brigas entre facções seriam menos atrativas e as intervenções policiais seriam menos drásticas e menos violentas.

3) A legalização reduziria a violência como um todo no Rio de Janeiro?
Sim, mas apenas de forma moderada. Muitos dos homicídios no Rio de Janeiro não são sequer relacionados a grupos criminosos organizados ou semiorganizados, mas sim a ações isoladas, como brigas de trânsito, de vizinhos, violência doméstica, desavenças etc. E mesmo aquelas mortes relacionadas ao crime organizado/semiorganizado não podem ser atribuídas exclusivamente ao tráfico de drogas, mas também a milícias, jogo do bicho, esquadrões da morte etc. Então, seria preciso primeiro saber quantas mortes são causadas pelo tráfico. Certamente essas mortes específicas seriam drasticamente reduzidas.

4) A legalização acabaria com o controle territorial armado das favelas do Rio de Janeiro?
Provavelmente não. Depois de mais de 40 anos de controle desses territórios, os criminosos dificilmente abririam mão dessa prática e abandonariam a dominação dessas comunidades. É uma situação muito antiga, então esse sistema informal de liderança, submissão e lealdades está muito entranhado nessas comunidades. Os bandidos sentiriam um impacto imediato, mas em um prazo relativamente curto, eles usariam suas armas para se articular em um novo esquema criminoso, mais próximo de um sistema mafioso. As milícias do Rio de Janeiro já ensinaram o caminho das pedras: venda de proteção, extorsão, controle do transporte, cobrança de taxas de comércio, extorsão de uma forma geral, venda de TV a cabo clandestina, venda de botijões de gás etc. Em algumas comunidades cuja atividade ilegal principal é a venda de drogas, algumas dessas atividades criminosas já começaram a ser praticadas. Além do mais, eles continuariam usando seus territórios para cometer crimes como roubo de carga, roubo de banco, assalto de rua, roubo a lojas e a casas.

Enfim, a legalização das drogas é importante mas não é uma solução mágica. No dia em que o Brasil for maduro o suficiente para legalizar e regulamentar a venda de substâncias alucinógenas, as autoridades precisam se preparar para enfrentar não só o comércio ilegal desses produtos (que provavelmente continuará existindo), mas principalmente para a readequação das quadrilhas criminosas para uma nova dinâmica.