sábado, 1 de novembro de 2025

VENDE-SE CARNE HUMANA: REFLEXÕES SOBRE A OPERAÇÃO DO ALEMÃO (OUT/25)

Vocês querem mais uma opinião sobre as 121 mortes do Complexo do Alemão? Provavelmente não. Eu mesmo não quero. Há quatro meses eu deixei o jornalismo diário justamente porque esses assuntos me esgotam mentalmente. Mas mesmo tentando me manter afastado, acabei sendo tragado para este assunto. Um dos motivos foi que meu trabalho me demandou isso. Ao deixar a agência de notícias onde trabalhei por 21 anos com noticiário do dia-a-dia, assumi a posição de produtor de um programa jornalístico (especial, não diário) de uma emissora de televisão. Outro motivo foi ver que isso, de repente, se tornou um assunto onipresente nas conversas entre amigos e familiares, no noticiário nacional e nas postagens em redes sociais. De repente, todos parecem ter alguma opinião sobre o assunto. E não há nenhum problema nisso. É saudável que os cidadãos reflitam e tenham opiniões sobre assuntos que afetam suas vidas. O problema é que a maioria das opiniões que vi não são fundamentadas. São apenas o extravasamento de sentimentos humanos (medo, raiva, indignação, ansiedade, traumas), baseado em pouca ou nenhuma reflexão. Por ter que lidar com esse assunto até dentro da minha casa, me obriguei, contra minha vontade a parar e refletir sobre o assunto. Sim, eu sou um "especialista" no assunto. Pelo menos academicamente me credencio ao título. Mas não quero soar presunçoso e me igualar a outros que se acham no direito de ter a primazia sobre o debate. Muitos policiais, por exemplo, acham que, por lidar no dia-a-dia com registros criminais, investigações, cumprimentos de mandados e patrulhamento de ruas, têm a credencial para ser a única voz legítima para opinar sobre políticas de segurança pública e justiça criminal. Que, por laborarem no dia-a-dia com o crime, são os únicos detentores do conhecimento da segurança pública e das soluções para controlar a insegurança e a violência. Policiais têm sim um grande conhecimento na área de segurança pública e têm muito a acrescentar no debate, mas esse não é um problema que afeta apenas a polícia. Ele afeta a todos e todos que refletem minimamente sobre o assunto têm direito de opinar. Eu, por exemplo, além de ter estudado sobre o assunto, passei anos cobrindo essa temática, o que inclui inúmeras entrevistas com autoridades, conversas informais com policiais, presença em operações da polícia (inclusive colocando a cara na linha de frente de confrontos armados. Isso sem empunhar uma arma ou um distintivo). Mas apenas por ser carioca, tendo vivido todos meus 44 anos na cidade, eu já me credenciaria ao debate, simplesmente por viver tudo isso e ter o mínimo de senso crítico. E meu senso crítico me faz tecer algumas reflexões: 1) A polícia vai investigar todas as 121 mortes de forma equilibrada e imparcial, como a lei determina? Ou vai fazer isso apenas com os assassinatos dos 4 policiais? 2) O Estado tem capacidade de fazer tal investigação? 3) O Estado tem interesse em saber se as 117 mortes de não policiais foram legítimas e ocorreram dentro dos limites legais? 4) Alguma autoridade pública reconhece a possibilidade de existirem mortes ilegítimas dentro desses 117 casos? 5) Dentre as possíveis mortes ilegítimas, alguma autoridade pública reconhece que inocentes (pessoas sem qualquer vínculo com a facção criminosa) podem ter sido assassinados, por engano ou por motivos torpes? 6) A polícia entende que, ainda que no meio dos 117 mortos haja pessoas com antecedentes criminais, elas podem não ter relação com a facção criminosa que domina o complexo do Alemão? 7) A polícia entende que, ainda que no meio dos 117 mortos haja pessoas com ligação direta com a facção criminosa, elas podem não ter estado envolvidas diretamente com confrontos armados naquele dia? 8) A polícia entende que, ainda que no meio dos 117 mortos haja pessoas que estavam confrontando a polícia, por meio armado, elas podem ter se rendido ou entrado em fuga (sem ameaçar imediatamente a vida do policial ou de outrem) no momento em que foram mortas? E que é ilegal matar pessoas rendidas, desarmadas ou em fuga, se elas não estiverem ameaçando a vida de ninguém naquele momento? 9) A polícia entende que, dentre as 117 mortes pode tanto haver casos de mortes de inocentes quanto execuções ilegais de criminosos? 10) A polícia entende que é preciso invetigar e punir rigorosamente agentes que tenham matado ilegalmente (inocentes ou criminosos)? 11) A polícia entende que ter ficha corrida e mandado de prisão em aberto não são motivos suficientes para a execução de uma pessoa? 12) A polícia entende que o monopólio estatal do uso da força não é sinônimo de legitimidade para matar alguém que não esteja em confronto naquele instante ou ameaçando naquele instante a vida de alguém? 13) A polícia entende que correr, ser preto, estar em qualquer lugar da favela, buscar se proteger, estar trancado dentro de sua casa, transitar por áreas públicas ou usar qualquer tipo de vestimenta no momento de uma operação policial não são justificativas para ser morto por um policial? 14) A polícia entende que há imensos riscos para a vida dos agentes policiais ao entrar em uma área controlada por criminosos (por incompetência histórica do Estado e dos próprios órgãos policiais)? 14.a) Os policiais entendem que sua vida está em risco a cada vez que entram em uma favela ocupada por homens armados (que atirarão para impedir ou retardar o avanço policial no território)? 14.b) Os policiais entendem que sua entrada na favela é apenas um paintball com balas de verdade? Um jogo no qual não há vitória permanente, apenas um sentimento de que se ganhou naquele dia, mas que de nada adiantará? Uma encenação macabra em que se mata e se morre a troco de nada? Um jogo de xadrez em que os peões são os próprios policiais, os criminosos e os moradores da favela, enquanto os jogadores são políticos que não têm coragem de sujar suas mãos de sangue diretamente? 15) Os policiais entendem que o mandato que lhes é concedido para o monopólio do uso da força é limitado pela lei, justificado pela legitimidade e vetado para usos pessoais por qualquer motivo (ganhos financeiros, promoção pessoal ou mesmo para vingança pela morte de companheiros)? 16) A polícia entende que, por mais vis, cruéis e desumanos que sejam os criminosos, a atuação dos policiais precisa ser pautada pela legalidade? 17) A policia entende que bandidos não têm régua de moralidade e nem precisam se submeter à legalidade (porque afinal eles são criminosos), mas que os agentes do Estado obrigatoriamente precisam se ater à lei (porque afinal não são criminosos)? 18) A polícia entende que, se seus agentes não seguirem a lei, eles estarão cometendo crimes? E que quem comete crime está sujeito às mesmas leis a que os criminosos e o restante dos cidadãos estão submetidos? 19) Os cidadãos entendem que é importante que a polícia tenha sua atuação restringida pela lei? 20) Os cidadãos entendem que nossa sociedade, por meio das leis e da Constituição, regula a atividade policial? 21) Os cidadãos entendem que nossa sociedade, por meio das leis e da Constituição, decidiu proibir a pena de morte? 22) Os cidadãos entendem que a proibição à pena de morte tem relação com a valorização da vida humana e a proteção aos cidadãos (para que não percam sua vida por um julgamento injusto)? 23) Os cidadãos entendem que se nossa sociedade não permite a pena de morte como punição para crimes, o Estado não pode matar ninguém pelo crime cometido por essa pessoa? E que o Estado ou mesmo o cidadão comum só pode matar algum cidadão em caso de ameaça imediata à vida de alguém? 24) Os cidadãos entendem que todos são iguais perante a lei e que todos devem ter o mesmo tratamento, independentemente da questão social, econômica, racial, regional etc? 25) O cidadão entende que a polícia não pode ter carta branca para matar ninguém, porque isso é proibido pelas nossas leis? 26) Os cidadãos entendem que devemos controlar a polícia para que ela não extrapole os limites legais impostos a ela em relação à vida humana de quem quer que seja? 27) Os cidadãos entendem que, ao permitir que a polícia aja fora da lei, estaremos dando carta branca para a polícia? E que essa carta branca significa que a polícia pode fazer o que bem entender, inclusive ações ilegais? 28) Os cidadãos entendem que a lei é o limite contra abusos e que permitir que a polícia haja fora da lei é permitir que a polícia cometa abusos? 29) Os cidadãos entendem que se não houver limites contra abusos não haverá nada para protegê-los contra esses abusos? 30) Os cidadãos entendem que a falta de limites os deixa vulneráveis aos excessos, abusos e violências? 31) Os cidadãos entendem que não é possível permitir excessos policiais contra outros cidadãos e ao mesmo tempo manter-se imune a esses excessos? 32) O cidadão entende que há incontáveis casos de pessoas inocentes mortas e feridas por excessos cometidos por policiais, inclusive crianças? A maioria nas favelas mas também no asfalto? 33) Estamos todos dispostos a aplaudir a morte de pessoas, sob o risco de sermos as próximas vítimas? 34) Se estamos dispostos a isso, não quero criar meu filho nessa sociedade.

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