Em meio ao elogio exagerado às políticas de segurança do Rio, ex-detentos relatam dificuldades em arrumar emprego no estado que tem menor índice de presos trabalhando entre todos os estados brasileiros
Na ingenuidade da sociedade brasileira, pouca gente relaciona a situação da segurança pública das ruas à realidade dos presídios e carceragens. Mas a história nos mostra que a violência e a organização de grupos criminosos têm direta relação com os sistemas penitenciários. Não é segredo para ninguém que os principais grupos criminosos do Rio de Janeiro e São Paulo nasceram como respostas aos precários e indignos presídios desses dois estados. A história do Comando Vermelho e do Terceiro Comando remontam ao presídio de Ilha Grande. E o nascimento do Primeiro Comando da Capital também está relacionado a uma necessidade dos presos de se juntarem para se opor ao Estado.
E isso não acontece apenas no Brasil. Das gangues dos números na África do Sul, às facções étnicas nos presídios americanos, a necessidade de bandidos se unirem no ambiente hostil e anárquico das celas das prisões transborda para fora dos muros das penitenciárias (até porque uma dívida assumida lá dentro, precisa ser paga por alguém aqui fora).
Rancorosa dos crimes cometidos pelos bandidos, a sociedade tende a ser vingativa e exigir que o Estado maltrate seus prisioneiros. Sem pensar racionalmente, a população se esquece de que esses detentos (que nem sempre cometeram crimes vis ou violentos) vão voltar às ruas um dia. Lembre-se que, no Brasil, inexistem as penas capital e perpétua. Em cinco a dez anos, em média, a pessoa estará na rua de novo.
É preciso evitar que esse ex-criminoso use sua vivência na prisão para continuar sendo um criminoso e é necessário darmos a oportunidade para que esse ex-criminoso não vire um criminoso novamente assim que pisar na rua. Uma das opções é proporcionar a esse cidadão oportunidades de educação e, principalmente, emprego.
Essa reportagem publicada na Agência Brasil mostra os desafios que detentos e ex-detentos do Rio de Janeiro enfrentam para arrumar um emprego dentro ou fora das prisões.
Ex-detentos do Rio de Janeiro relatam dificuldades de arrumar emprego
Depois de cumprir pena de prisão, ser considerado livre pela Justiça nem sempre significa liberdade para um ex-detento. Marcados para sempre pela condenação, egressos do sistema penitenciário fluminense enfrentam muitas dificuldades para encontrar emprego e serem reinseridos na sociedade.
Todo ano, milhares de presos saem das cadeias do Rio de Janeiro. Desde 2010, quase 50 mil presos deixaram o sistema penitenciário fluminense. Mas apenas uma fração desse contingente é absorvida pelo mercado de trabalho formal.
O motivo principal, segundo presos e ex-detentos ouvidos pela Agência Brasil, é o receio das empresas de contratar uma pessoa que cometeu crimes (algumas vezes violentos), mesmo ela tendo, perante a Justiça, pago sua dívida com a sociedade.
Condenado a 12 anos de prisão, Taiguara Neves da Silva, de 38 anos, saiu do regime fechado (em que o preso deve ficar o tempo inteiro no presídio) há mais de um ano, mas ainda não conseguiu de volta o desejado emprego como soldador industrial. Cumprindo pena em regime aberto, em que seus passos são monitorados por uma tornozeleira eletrônica, Silva tenta há vários meses ser contratado por um grande estaleiro naval.
“Desde fevereiro até agora, eles já me pediram oito itens [exigências]. Eu já atendi a todos eles, mas até agora nada. Eles disseram que o laudo de uma cirurgia que eu fiz em 2004 já estava caduco. Consegui um laudo mais recente e levei até a firma. Chegando lá, eles arrumaram outra exigência. Pediram para eu mudar meu endereço na Defensoria Pública, eu mudei. Pediram para alugar uma casa mais próxima do estaleiro e eu aluguei por R$ 300. Não morei um só dia na casa e não consegui meu emprego de volta”, disse.
Silva provavelmente ainda estaria desempregado se não conseguisse uma vaga de faxineiro na Fundação Santa Cabrini, instituição vinculada ao governo do estado e voltada para a inserção dos presos e ex-detentos no mercado de trabalho.
“Acredito que essas exigências todas [do estaleiro] têm a ver com o fato de eu ser ex-presidiário. Eles alegam que não, mas mandam eu arrumar um monte de coisa, e eu, no maior sufoco, arrumo. No final, nunca dão uma posição concreta”, disse.
Aos 65 anos, o mecânico José Braga enfrenta dificuldade semelhante há mais de dez anos. Ele conta que cumpriu 30 anos em regime fechado, depois de ser preso por assalto à mão armada. Quando saiu da prisão, até conseguiu alguns empregos na iniciativa privada, mas não ficou por muito tempo em nenhum deles.
“Sem dúvida há uma discriminação contra ex-presidiários. O patrão ou a empresa faz um levantamento da vida pregressa da pessoa. Quando vê que a pessoa cumpriu pena, pode até empregar, mas se surgir qualquer coisa mínima dentro da empresa, ela é dispensada. Tive vários problemas. Estava empregado, já trabalhando, aí eles viam minha ficha e viam que eu era ex-presidiário, me mandavam embora. Isso não aconteceu em uma empresa, mas em várias delas.”
O ex-militar hoje também depende da fundação pública para garantir seu sustento. O presidente da Fundação Santa Cabrini, Jaime Melo, diz que não há estatísticas precisas sobre quantos egressos do sistema penitenciário fluminense conseguem emprego depois de cumprir pena, mas garante que são poucos.
“Há um estigma natural, uma vez que ninguém está lá [na prisão] à toa. A sociedade é precavida. Mas, ao meu ver, é uma precaução que não ajuda em nada. Essas pessoas só voltarão a viver em paz na sociedade se dermos uma oportunidade”, disse Melo.
Mesmo tendo sofrido na pele a dificuldade de se reinserir no mercado de trabalho, Taiguara Neves da Silva sabe que o primeiro passo para arrumar um emprego precisa ser dado pelo próprio ex-preso, que precisa querer trabalhar.
“Muitos companheiros que estavam comigo lá [na prisão] nem pensam em correr atrás para ficar tranquilos e voltar para a sociedade quando sair. A verdade é que, para você entrar [na prisão] é uma porta muito larga, mas para sair é uma porta muito complicada. Então, muitos já saem no intuito de 'meter a mão' de novo, porque é muito complicado”, disse.
Atualmente, a fundação é um dos principais caminhos para integrar ex-detentos no mercado de trabalho. São 358 pessoas empregadas na própria instituição ou nas 30 empresas que mantêm convênios com ela.
O presidente Jaime Melo acredita que a oportunidade de emprego para essas pessoas vai melhorar bastante com a Lei Estadual 6.346, aprovada em novembro de 2012, que obriga empresas prestadoras de serviço ao governo fluminense a reservar 5% de suas vagas de emprego para egressos do sistema penitenciário do estado. A lei, no entanto, ainda precisa ser regulamentada.
Rio de Janeiro tem menor índice de presos trabalhando entre todos os estados
As dificuldades do preso no Rio de Janeiro de arrumar emprego já começam dentro do sistema penitenciário, antes mesmo de conseguir a liberdade. Segundo os dados mais recentes do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), de julho de 2012, o estado do Rio é a unidade da Federação com o mais baixo índice de detentos exercendo atividades de laborterapia (capacitação que envolve atividade produtiva) e trabalho em todo o país.
De acordo com os dados, enquanto a média nacional de presos que trabalham é 20%, o Rio de Janeiro tem apenas 2% de seus 33,6 mil detentos com alguma ocupação (ou seja, 676). A força de trabalho dos sistemas penitenciários de estados como São Paulo e Minas Gerais representa, respectivamente, 25% e 22% do total de presos.
Além do Rio, apenas cinco estados brasileiros têm menos de 10% de seus presos executando alguma atividade laboral: Pará (8%), Paraíba (8%), Acre (6%), Rio Grande do Norte (5%) e Ceará (3%).
Segundo a Fundação Santa Cabrini, órgão do governo fluminense responsável por ajudar detentos e ex-detentos a conseguir trabalho, os dados do Depen (que são informados pelo próprio estado do Rio) estão incompletos porque não incluem os presidiários que trabalham como faxineiros dentro das unidades prisionais. Por isso, segundo a entidade, o total de empregados dentro do sistema penitenciário ultrapassa o número de 2 mil detentos e chega a 7% da população carcerária.
Mesmo considerando os novos dados apresentados pela Fundação Santa Cabrini, o estado do Rio de Janeiro continua tendo, relativamente, um dos quatro menores contingentes de trabalhadores no sistema penitenciário brasileiro.
Costureira pediu para continuar presa em regime fechado com medo de não arrumar emprego
A história de Viviane Cristina de Oliveira, de 37 anos, poderia ser facilmente confundida com a de muitas outras mulheres casadas com presidiários no Rio de Janeiro. Isso se não fosse por uma diferença: por causa da prisão do marido, ela acabou se envolvendo com atividades ilícitas para sustentar a casa.
Presa por tráfico de drogas e condenada a 16 anos e dez meses, Viviane teve que passar quase quatro anos e meio presa em regime fechado na Penitenciária Talavera Bruce, no Complexo de Bangu. “Pensei que tudo tinha acabado para mim, que tinha perdido tudo, meus filhos. Tenho dois filhos [hoje com 21 e 14 anos] e eles tiveram que ficar com a minha sogra. Ela acabou me ajudando muito, porque eu estava arrasada lá dentro”, conta.
Por meio de uma agente penitenciária que conheceu antes de ser presa, quando ainda ia visitar seu marido no complexo prisional, Viviane acabou reorganizando sua vida e voltou a costurar dentro do presídio. “Ela me botou na cozinha e, quando saiu minha sentença, me transferiu [para a oficina de costura].”
O trabalho na oficina de costura do presídio deu certa segurança a Viviane. Mas, quando ficou sabendo que sua pena poderia progredir para regime semiaberto (quando o preso ganha o direito de passar o dia na rua e voltar para a prisão apenas para dormir), foi tomada por um grande medo. Ela sabia que não seria fácil arrumar um emprego fora da cadeia.
“Quando estava para passar para o semiaberto, eu ia negar. Eu falei: 'estou para ir para o semiaberto, mas não quero ir, porque as condições lá são nenhuma. Se eu ganhar [o semiaberto], eu vou acabar evadindo [fugindo do sistema]”, disse.
Com a garantia de que conseguiria um emprego como costureira na Fundação Santa Cabrini, órgão do governo fluminense responsável por ajudar presos e ex-presos a arrumar trabalho, Viviane saiu do regime fechado. Há sete meses no semiaberto, hoje ela pode sair às ruas e ainda ganhar dinheiro para realizar o sonho de montar uma confecção de roupas.
“Me envolvi no tráfico mais ou menos para ter dinheiro. Acabei me envolvendo muito e não dava para voltar. Mas já tinha essa vontade [de montar uma confecção]. Já tenho máquinas e vou comprar outras, porque isso é o que eu quero fazer. E, com a confecção, vou ver se consigo resgatar mulheres como eu.”
Presa por tráfico internacional de armas, ex-detenta sonha em se tornar assistente social
Andreia de Deus, de 39 anos, talvez não tivesse a menor ideia de que sua vida teria uma reviravolta quando, em uma viagem para o Paraguai, foi presa pelas autoridades daquele país. Desempregada havia muitos anos, a professora havia aceitado participar de um esquema de contrabando de armas e munições do país vizinho para o Brasil, para sustentar os dois filhos.
“Tinha dois filhos pequenos e passava por dificuldades. Acabei fazendo besteira, até para ter uma renda. Infelizmente, acabei presa e meus filhos ficaram espalhados [com a irmã e uma vizinha]. Foi uma situação horrível, mas deu para aprender”, disse.
Condenada a seis anos e nove meses de prisão, ela ficou oito meses presa em uma cadeia no Sul do país. Depois, ainda ficou mais dois anos no regime semiaberto e outros dois, em regime aberto. Mas o caminho de volta ao convívio social não foi fácil.
“Eu procurei emprego apenas uma vez e foi uma experiência péssima. Quando disse que estava em prisão domiciliar, a pessoa falou que infelizmente não poderia me empregar, porque eu poderia afligir os funcionários e causar problemas. E ela não me deu o emprego”, disse.
Com dificuldades em arrumar emprego na iniciativa privada, Andreia teve que continuar trabalhando na Fundação Santa Cabrini, órgão estadual voltado para ajudar presos e ex-detentos a arrumar emprego, que já havia a ajudado desde quando ainda cumpria pena.
“Quando você fala que saiu do presídio, as pessoas já pensam que você é burro e não é confiável. Ninguém nunca imagina que aquele preso um dia teve uma formação, que teve um deslize, mas quer mudar. A primeira coisa que pensam é discriminar. 'Será que ele não vai voltar a roubar?'”, lamenta a ex-presa, que sonha em se tornar assistente social.
ONG-empresa emprega mais de 30 presos e ex-detentos no Rio
Quando foi criada, há quatro anos, com o objetivo de transformar lonas usadas em produtos como bolsas e mochilas, a organização não governamental Tem Quem Queira, do Rio de Janeiro, decidiu que não bastava contribuir para o meio ambiente. Gerida como uma empresa, que comercializa suas mercadorias, a ONG percebeu que, no processo produtivo e comercial, poderia contribuir com o país também de outra forma: ajudando na reinserção de ex-criminosos na sociedade.
Ao empregar presidiários e ex-detentos, a Tem Quem Queira é um caso raro de empresa que oferece oportunidades a pessoas que cometeram crimes, mas já cumpriram suas penas.
Desde então, cerca de 500 presos em regime fechado, semiaberto, aberto e em liberdade condicional já passaram pelas oficinas da ONG-empresa. Atualmente, há mais de 30 detentos que exercem alguma atividade na oficina localizada dentro de uma penitenciária e ex-presos trabalhando nas ruas.
“Eles só precisam de uma oportunidade. Nós, empresários, podemos dar essa oportunidade. A resposta que a gente tem [desses funcionários] é muito boa. A gente tem um índice de praticamente 100% de reinserção socioeconômica. Todas as pessoas que passaram por aqui levam suas vidas de uma maneira integrada [à sociedade], não segregada”, disse a coordenadora da ONG, Adriana Gryner.
Ela conta que nunca teve problema com nenhuma dessas pessoas. Algumas delas, segundo a coordenadora da ONG, até se destacam. A loja da Tem Quem Queira, que será inaugurada em um shopping na Barra da Tijuca, área nobre da cidade do Rio, será gerenciada por uma ex-detenta, que trabalha com Adriana desde que ainda estava presa.
Para os empresários que têm preconceito em contratar essas pessoas, Adriana manda um recado: “Se você empregar essa pessoa, é menos um que vai voltar para o crime e roubar seu filho. Por que as pessoas roubam? Muitas vezes, porque não têm oportunidade. Dando oportunidade, você mitiga a criminalidade”, ressalta.
sexta-feira, 11 de janeiro de 2013
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