No dia 13 de janeiro de 2018, estava de plantão
na redação. Não era um plantão qualquer. Havia o velório e enterro de um grande
amigo de amigos queridos. Um delegado, amigo dos meus amigos, havia sido
assassinado. E, como repórter, não podia me furtar de cobrir a história, por
mais doloroso que fosse.
Não fui ao velório e ao sepultamento
para explorar a dor da família e dos amigos. Sou contrário a isso, sempre fui e
sempre serei. Reportar a dor dos familiares, apenas para conseguir uma foto ou
depoimento chorosos não presta para nada além da curiosidade mórbida de
espectadores que sentem alívio em ver que há pessoas numa situação pior que
eles próprios.
Fui para lá com o objetivo de falar com
o delegado que investigava o caso e com as autoridades. Sabia que elas estariam
lá, não para se solidarizar com os enlutados, mas para dar respostas inúteis a problemas
que eles não conseguem resolver.
Como se isso não fosse ruim o suficiente
para um plantão de sábado, uma operação policial ocorria na Mangueira. A coisa
aparentemente era feia. Moradores tinham descido para a rua Visconde de Niterói e feito
barricadas incendiárias. Um “suspeito” havia ficado ferido, bem como três
policiais militares.
Havia um intervalo entre o velório e o sepultamento.
Corri para a Mangueira, que fica mais ou menos no meio do caminho entre o
centro da cidade (local do velório) e o Caju (local do enterro).
Fiquei menos de meia hora no local. Mas
foi o suficiente para vivenciar o “sábado qualquer” na Mangueira.
O cheiro de fumaça de plástico e
borracha incediada invadia minhas narinas, enquanto via um capitão PM alucinado,
falando pelo rádio, dentro da viatura.
- Capitão! – tento uma abordagem.
Nada, ele me ignora. É a autoridade do pedaço.
Com sua pistola e uma tropa de comandados, armados com fuzis, ele manda e
desmanda na parada.
Ele encerra a comunicação pelo rádio e
sai da viatura.
- Capitão! – tento mais uma vez – Major,
coronel... – tento elevar seu ego, sem sucesso.
Ele não quer falar comigo. Ele quer
experimentar o êxtase do poder, ainda que fugaz. Ele quer apreciar uma
autoridade que o Estado lhe concedeu durante aquele “sábado qualquer” na
Mangueira.
O capitão mal sai da viatura e já parte
em direção a uma das ruas que ligam a Visconde de Niterói à comunidade. Ele sai
em disparada, na direção de três PMs, subalternos, que também se regozijam com
a autoridade que lhes foi concedida pelo Estado. Aquele é o momento de extravasarem
suas frustrações (capitão e subalternos). O salário de merda, os atrasos no pagamento,
o governador que foi vice e companheiro do ex-governador condenado por
corrupção (o qual ele é obrigado a servir), o risco desnecessário a que ele é
submetido cotidianamente. Tudo isso vem à mente quando são levados à Mangueira
naquele sábado qualquer, para “combater o tráfico”...
Hahaha... Combater o tráfico. Essa é a
expressão que a PM usa mas que não faz qualquer sentido. Combater o tráfico? Hahahahaha...
Não seria melhor dizer, trocar uns tirinhos numa favela mesmo sabendo que nada
vai mudar?
Voltando ao capitão, ele corre para
junto de seus subordinados, que apontam suas pistolas e fuzis para dentro da
favela, escondidos atrás de uma parede, apenas apontando suas cabeças para a
viela.
Eu acompanho tudo de perto. Os moradores
estão meio indecisos. Eles estão nos bares bebendo, mas sabem que alguma coisa
pode acontecer. De uma hora para outra, um tiro pode acabar com suas vidas. Um
comerciante fechou as portas de sua vendinha. Não quer levar problemas para dentro
da sua loja.
Os PMs subalternos gritam, alucinados
como o capitão, para alguém que caminha pela viela, mas que, de onde estou, não
consigo ver quem é.
- Vem pra cá, porra! Vai fugir não,
neguinho! – um dos PMs grita. Não me lembro se é um soldado, cabo ou sargento.
“Fudeu! O tiro vai comer aqui!”, eu
penso. Mas já passei por isso. Tiro não falta em ações policiais nas favelas do
Rio. Nos meus 15 anos como jornalista, já presenciei vários outros. Olho para
os carros, as paredes. Visualizo onde posso me proteger, caso minhas previsões
se confirmem.
A arma do PM está apontada para a viela.
Ele deve estar gritando com um bandido armado, no outro extremo da rua.
“Caralho! O que estou fazendo aqui?
Tenho um filho de cinco anos agora. Não posso mais brincar de correspondente de
guerra”, penso enquanto olho para o estressado PM, com sua pistola em riste.
O PM sai de trás do muro, com a pistola
apontada para alguém. “Fudeu! O couro vai comer agora. Tem um bandido com um
AR-15 pronto pra dar um tiro”...
Minha mente entra em parafuso, quando vejo
o alvo. É um casal. Um homem e uma mulher, cada um com uma criança (que não
devem ter mais do que três anos) no colo.
Esse é o "neguinho" com quem o PM vinha
travando o raivoso embate... É um homem desarmado, com uma criança no colo...
O capitão, a autoridade local, o rei, o
ditador, o Justiceiro-da-nova-geração, se ouriça como um pavão... Um pavão
covarde, isso é fato... E parte para cima do “neguinho”.
A criança no colo do cidadão se torna
invisível. O capitão, a autoridade real, agarra no braço do “neguinho”,
enquanto o PM subalterno aponta sua pistola para a “ameaça potencial” (um homem
com os dois braços ocupados em segurar uma criança).
O capitão começa a puxar o “neguinho”.
Puxa com força. Parece que seu objetivo é fazer o homem largar a criança e
fazê-la se estatelar no chão. “Em 15 anos, não vou precisar voltar aqui para
matar essa praga”, ele deve pensar.
Depois de muito puxar o braço do “perigoso”
suspeito, “armado” com uma criança de colo, alguém consegue pegar a criança.
Estou abismado o suficiente para não perceber quem ampara o bebê, se é a mãe ou
outra pessoa qualquer que está na rua e se prontifica a ajudar.
O capitão joga o homem no chão, sob o
protesto dos moradores, e torce seu braço. Depois o joga na caçamba de um
camburão. Sim, estamos no século 21, mas eles ainda existem e os presos vão no
bagageiro (mesmo as leis de trânsito proibindo qualquer pessoa de viajar num
porta-malas, por questão de segurança), afinal, presos não são “gente”, devem
pensar o capitão-autoridade e seus subordinados-autoridades.
Antes de ir embora, ainda sou abordado
por um policial do Choque, que acaba que chegar ao local e me pergunta: “O que
você está fazendo aqui?”. Antes que eu responda, ele percebe que sou jornalista
e fala: “Ah, você é da reportagem”. Uma senhora é abordada da mesma forma, como
se fosse crime transitar pela rua: “O que você tá fazendo aqui? Deixa de ser
fofoqueira!” (sim, esse foi o linguajar que a recém-chegada autoridade usa).
Resolvo ir embora. Já está na hora do
sepultamento do delegado. Antes de ir, vejo o capitão de novo. Afinal, ele é o
rei do pedaço! Com uma arma na cintura e três estrelas prateadas no ombro, ele é
a lei!
Ele olha para um menino. Sim, um menino,
que não deve ter 14 anos de idade. Ele está na rua, montado numa bicicleta,
olhando para os policiais. Apenas isso, olhando para os policiais. É o
suficiente para que o capitão, gritar, cheio de autoridade: “Tá olhando o quê?!
Quer ir pra delegacia também?!”.
O moleque responde, de forma enviesada,
que não está fazendo nada. O capitão ameaça partir pra cima. Quem saber torcer
seu braço, jogá-lo no chão, empurrá-lo para dentro de um bagageiro, como fez
com o homem que até minutos atrás cometeu o crime de descer da favela com uma
criança nos braços?
Não. Ele não faz isso. Desiste no meio.
Talvez ele já tenha extravasado suas frustrações no favelado minutos atrás. Ele
só quer mostrar pro moleque quem é que manda, não precisa mais sujar suas mãos.
É hora de ir embora. Chamo a motorista,
entramos no carro e deixamos a Mangueira. Apesar de ter me exposto ao risco, eu
estou tranquilo. Sei que dali vou para minha casa. Eu moro no asfalto. Nenhum
policial vai tirar meus filhos do meu braço, torcer meu braço e me jogar no
chão apenas porque estou andando nas ruas.
Pelo menos, por enquanto, não corro esse
risco. Mas quem sabe? Rezo para que meu filho não passe por isso, assim como espero
que a criança, arrancada das mãos de um adulto (que deve ser seu pai) antes de
completar seus quatro anos de idade, não passe por isso.
Rezo para que, quando chegar a hora
dessa mesma criança carregar seu filho no braço, não tenha que ser humilhada
novamente. Mas rezo ainda mais para que essa criança, que foi violentada pelo
Estado, não decida se voltar contra essa sociedade que é cúmplice dessa
violência, contra o Estado que a violentou, contra esses mesmos policiais que
um dia a violentaram.
Espero que um dia, essa criança não se
torne o criminoso, que assasinará um policial, como o delegado para cujo
sepultamento me desloquei depois de deixar a Mangueira.