quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

CRÔNICA DE UMA MADRUGADA QUALQUER DE CRIME NO RIO

A história que vou contar hoje, é uma história de investigação, de polícia, de crime, de Rio de Janeiro... Ela aconteceu de verdade. E aconteceu recentemente. Não vou dizer o dia porque não quero identificar os personagens.

Nesse dia qualquer, acordei às 4h20 da manhã, sobressaltado, com o barulho de metal sendo despedaçado na rua. Sempre quando escuto isso, me preocupo de que estão invadindo o meu prédio. Afinal, invasão de prédios durante a madrugada para furto de produtos de metal (e outras coisas mais valiosas como bicicletas) virou algo rotineiro nos últimos anos, na região da Tijuca e em vários outros pontos da cidade do Rio de Janeiro.
Olho pela janela e vejo dois ladrões, na calçada sob o meu edifício, estraçalhando o que parece ser uma janela de alumínio, recém-furtada de algum lugar que não sei qual é. Em questão de segundos, eles desmontam toda a esquadria e saem com os pedaços de alumínio sobre os ombros pela rua.
Resolvo fazer algo que já pensava em fazer há algum tempo. Troco de roupa, pego a chave do carro e saio pela rua, tentando ver onde os ladrões vão levar aquele material. Perco-os de vista, mas tenho uma ideia de onde eles podem estar indo. Então, faço a volta na Uerj, e sigo em direção à Mangueira.
Já na Uerj vejo não aqueles que desmontaram a janela de alumínio, mas outras três pessoas diferentes, carregando cada uma, seu butim de uma madrugada sem lei no Rio de Janeiro, numa espécie de procissão criminosa rumo ao ganho financeiro do dia. Um deles, tem apenas uma viga de metal, mais na frente outro é mais ousado. Carrega algo do tamanho de um portão em cima da cabeça.
Exatamente, do outro lado da rua, há uma patrulha da PM. Um dos policiais ronca dentro do carro. O outro está escondido atrás do veículo (mas já vou chegar neles).
Aproveito que o sinal fecha, entre a São Francisco Xavier e a Radial Oeste, para dar um tempo pra ver onde aqueles homens vão despachar suas mercadorias furtadas da casa de alguém. Eu já estava filmando o homem carregando o trambolho na cabeça, mas resolvo agora filmar o cidadão que carrega a humilde viga de metal. Não escondo o celular, faço questão que ele veja que estou gravando a fuça dele.
Ele se abaixa e pega uma pedra para jogar no meu carro. É a deixa para eu acelerar o carro. Estou numa “investigação” mas não quero ter meu carro danificado.
Baixo o celular para dirigir mas logo vejo para onde eles estão indo. Uma pequena garagem no que sobrou da favela do Metrô (aquela que deveria ter sido desmontada e seus moradores direcionados para moradias dignas). Está todo mundo ali. Os ladrões e os receptadores, a 100 metros de uma patrulha da PM. Sem esconder nada.
Faço a volta e retorno à Uerj para conversar com os policiais. Na verdade, com o policial, já que um deles aproveita o horário de trabalho para dormir. O PM fica meio ressabiado atrás da viatura quando eu saio do carro. Faço questão de dar bom dia antes que ele me confunda com um bandido (não preciso dizer o que pode acontecer nesses casos).
E começo a explicar tudo o que vi pro PM. Sua primeira reação, quando eu disse que várias pessoas estavam passando por ali com produtos de metal furtados, foi: “Por aqui não passou ninguém não”.
“Como não? Acabei de filmar um cara passando com um pedaço de metal. Ele até pegou uma pedra pra tacar no meu carro... Aqui em frente, do outro lado da rua. E mais. Eles estão indo prali, um ferro-velho ali na favela do Metrô”.
Quase falo, se você sair daí de trás da viatura e ir até o meio-fio, vai ver toda a trambicagem rolando solta...
Ele diz que não pode fazer nada. Tem que ligar pro 190.
Eu já sabia que ele não ia fazer nada. Ele tá só querendo ficar sossegado atrás da viatura até a hora de acabar seu turno. E ele não vai acordar o dorminhoco dentro da viatura pra checar uma denúncia dessas...
Respondo que não vai adiantar nada. Quando o 190 acionar uma patrulha, o ferro-velho já vai ter fechado. Então vou pra DP.
Acredite. Não ando nem mais 100 metros. A 20a DP, de Vila Isabel, fica na rua Luís de Matos, uma rua que desemboca quase em frente de onde o homem com a viga de metal me ameaçou com uma pedra.
Antes de entrar na delegacia, vejo um grupo de PMs parados em frente a DP, talvez uns cinco ou seis. Já imagino que vou ter que esperar algumas horas pra ser atendido, porque penso que teve alguma operação policial e que eles devem estar fazendo o registro de ocorrência.
Mas não. A delegacia está vazia. Os PMs só tão fazendo hora ali mesmo. Provavelmente também passando tempo até seu turno acabar.
Dentro da delegacia, um sujeito sentado, de calças de moleton e chinelos Rider (ou algo do tipo).
“Posso ajudar?”
Então explico tudo o que vi, mais uma vez. Falo que logo ali, está rolando um flagrante daquilo que virou uma pandemia no Rio de Janeiro, antes da covid. O furto de produtos de metal não ocorre apenas dentro de edifícios. Todos os dias, cabos de luz e de sinais de trânsito são afanados em busca de um ganho rápido.
É só chegar ali e dar o flagrante de receptação.
Ele me encara, com um olhar condescendente, mas sem qualquer sinal de que vai levantar a bunda do sofá pra fazer qualquer coisa.
“Você mora onde?”
Digo a rua.
“Mas eu não fui furtado. Eu só vi os caras desmontando a janela e resolvi descobrir onde eles vendiam essas coisas. Tenho medo que invadam meu condomínio”
Expliquei que meu prédio já tinha sido invadido algumas vezes. Minha preocupação não é com bens materiais. Meu medo é que eles arranquem alguma coisa elétrica ou de tubulação de gás e isso coloque em risco todos os moradores. Digo que já aconteceram coisas assim na região.
Só quero que ele se empenhe em começar a fazer alguma coisa. Que ele vá até o ferro-velho, sei lá. Na verdade, a essa hora, eu já me sinto um idiota paranoico, que está fazendo uma tempestade num copo d'água por causa de alguns furtos bestas na região.
Digo onde está o ferro-velho. E então sinto o alívio imediato na cara do inspetor.
“Ah, ali? Na Favela do Metrô?”. Era a desculpa que ele queria para voltar pro sossego do seu celular. “Ali nem é área nossa. É área da 18a DP”...
A 18a DP fica na Praça da Bandeira, a mais de 4 quilômetros dali. Mas, enfim é área de outra DP, o inspetor podia ficar em paz com a sua consciência.
E o inspetor conclui. “Mas nem adianta fazer nada. A gente já prendeu o dono desse ferro-velho e ele tá solto de novo. Os policiais aí acabaram de trazer um vagabundo que tava roubando essas coisas, mas não vai dar em nada. Só mesmo matando esses filhos da puta”.
“Olha, vou te dizer uma coisa”, eu respondo. “Se a Polícia Civil fizesse o que tô fazendo, conseguia resolver melhor. Pega uma madrugada aí, monta uma campana numa dessas ruas. Pega os caras roubando, filma tudo, segue eles até o ferro-velho. Filma eles vendendo os produtos furtados e pronto. Já tem um caso pra Justiça. Realmente pegar esses pés-rapados e trazer pra Delegacia não vai adiantar nada. Mas o ferro-velho tá ali, funcionando pertinho”.
Ele só concorda. E me despacha em silêncio. Seus olhos já querem voltar pro celular.
Já são umas 15 pras cinco. Tudo aconteceu muito rápido, mas não quero mais perder tempo. Sei que dali não vai sair nada. Percebo que ele está sozinho ali. Não entendo de plantões policiais, mas imagino que policiais não devem cuidar sozinhos de uma delegacia. Será que os colegas estão ali dormindo? Será que estão dormindo em casa? Será que estão em diligência num investigação super relevante? Será que estão investigando os receptadores de metal furtado (hahaha)? Não sei. Mas também não pergunto mais.
E sozinho ele não vai fazer nada.
Saio na rua e faço uma última tentativa, com os PMs que estão conversando do lado de fora da delegacia. Eu sei, sou um sonhador... Mas sei lá, eles estão num grupo maior do que o PM escondido atrás da viatura. De repente, eles querem ação. Vai que...
Interpelo os PMs e, mais uma vez, explico tudo. Um deles, que parecia um dublê mal-ajambrado de Vin Diesel, nem deixa eu terminar de falar.
“Irmão, a gente acabou de prender uns 6 aí... Não adianta ir nesse ferro-velho, não. O cara tá só comprando, não tá roubando...”
“Mas não seria receptação?”, eu tento, na esperança de que ele saiba o que é receptação.
Ele é pego meio fora de guarda...
“E também tem uma lei nova, justamente por causa desses casos de furto. Os produtos precisam ter comprovante de procedência, nota fiscal, essas coisas”. Na verdade, não conheço muito a lei, mas sei que aprovaram algumas restrições para ferros-velhos, devido às denúncias mostradas diariamente na TV Globo. A lei em questão é Lei Complementar Municipal 236/2021, mas na hora eu não sabia.
E aí vem aquela famosa saída pela tangente.
“É, cara, tem que falar com a Polícia Civil mesmo...”
Ele talvez não tivesse percebido, mas eu tinha acabado de sair de uma delegacia e tudo que encontrei foi um agente de pijamas na recepção.
Chego em casa antes das 5h. Às 6h tenho que começar a trabalhar, então não vou conseguir dormir. Numa última tentativa pra não parecer um completo fracassado, ligo pro 190. Explico a história de novo, dou a localização do ferro-velho e, enquanto tento explicar os perigos dessas invasões e por que estou tão preocupado, o operador me corta, dando-me um protocolo e dizendo que vai dar encaminhamento pra minha denúncia.
Desligo o telefone, preparo um toddy e vou pra varanda. Ali de cima, olho pra calçada. Pelo menos agora não tem ninguém fazendo barulho, enquanto desmonta uma janela roubada.

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