Sugiro a quem ainda não viu o filme que não leia este artigo, já que ele revela o final da história
Ontem assisti ao filme Tropa de Elite 2 no cinema. Devo dizer que me identifiquei muito com algumas partes do filme. Em especial com o final do filme. O enredo coaduna com tudo o que venho escrevendo neste blog e no meu twitter (@vitorabdala) há meses.
Não vou aqui entrar em detalhes e nem dizer o que é verdadeiro e o que é falso no filme (até porque meu amigo Jorge Antônio Barros, o Repórter de Crime, já o fez em um artigo para o caderno Rio Show, de O Globo, na última sexta-feira, com muito mais competência do que eu poderia ter feito).
Quero apenas ressaltar uma parte importante do enredo do filme que, talvez, o espectador do filme não tenha dado a devida atenção. Uma parte que, pelo menos para mim, é a mais importante de Tropa de Elite 2: a mudança de pensamento do personagem principal do filme, Coronel Nascimento (vivido por Wagner Moura).
A mudança no pensamento de coronel Nascimento é radical, mas vai se dando vagarosamente ao longo do filme. Tropa de Elite 2 começa com coronel Nascimento pensando como um verdadeiro caveira: a eliminação do bandido é o caminho para a solução dos problemas e para a pacificação do estado do Rio de Janeiro.
Durante a cena de uma rebelião no presídio de Bangu 1, o chefe da principal facção criminosa do Rio de Janeiro toma o controle da penitenciária a fim de eliminar seus oponentes da quadrilha rival.
Nascimento, então comandante do Batalhão de Operações Especiais (Bope), é chamado a intervir para acabar com a rebelião e pensa que a solução é deixar todo mundo se matar dentro do presídio. Ele imagina que a solução é deixar que os bandidos se matem entre si e que o Bope elimine quem sobreviver.
Mas o coronel caveira logo tem seus planos frustrados porque um “intelectualzinho de esquerda, pertencente a uma ONG de direitos humanos” resolve intervir para por um fim à barbárie, a pedido do governador, que não quer mortes para que isso não afete sua reeleição. Coronel Nascimento pensa que seria muito mais fácil se não existisse o “pessoal dos direitos humanos” para defender bandido.
No final, apesar dos esforços do ativista de direitos humanos (o historiador Fraga, que depois se torna deputado estadual), o Bope acaba executando o chefe da rebelião. O episódio pega mal para Nascimento e a cúpula do governo e da segurança resolvem castigar o coronel.
Mas, para a surpresa do governo, Nascimento é aclamado pela sociedade. O caveira é aplaudido nas ruas pelo povo, que está cansado de ver sangue no Rio de Janeiro e que, por isso, paradoxalmente, defende que a polícia resolva os problemas derramando mais sangue.
A contragosto, o governador (em busca da reeleição) se vê obrigado a atender ao “povo”, para não perder votos, e pune o “herói” caveira com uma promoção. Nascimento deixa o comando do Bope e assume a Subsecretaria de Inteligência.
Na cadeira de subsecretário, Nascimento ainda mantém sua visão deturpada de resolver o crime matando traficante e vê sua nova posição hierárquica como uma oportunidade de tornar o Bope uma “máquina de guerra”.
O coronel-subsecretário continua achando que a culpa de todos os males é de duas dúzias de raquíticos favelados empunhando fuzis dentro das favelas e dos maconheiros (que, na visão deturpada de Nascimento, são os verdadeiros culpados, porque eles financiariam a guerra).
Nascimento segue em sua cruzada moral para “limpar” a cidade dos favelados raquíticos com seus fuzis. O coronel diz que sua estratégia quebra a espinha do tráfico.
Em sua visão deturpada de mundo (talvez criada durante seu exigente treinamento militar, talvez gerada pelo convívio com colegas de farda, talvez construída a partir de informações obtidas por uma mídia falso-moralista), coronel Nascimento é incapaz de ver o óbvio: o problema não são os magrinhos que, muitas vezes, sequer sabem usar as potentes armas que empunham.
O buraco é bem mais embaixo. O problema da violência tem raízes muito mais profundas do que a visão através da mira do fuzil é capaz de compreender.
Nascimento continua sendo muito eficiente para matar, de forma sistemática, a suposta “escória social”, a suposta “causa de todos os males”. Mas com todo seu treinamento militar e sua vontade de acabar com o crime, o caveira é incapaz de ver que está sendo usado apenas como um peão num jogo de xadrez bestial.
Nascimento está cegado pelo mesmo senso comum que cega toda a sociedade: o bandido pobre é mal e, ao eliminá-lo, estaremos salvando a sociedade do caos. Ele não vê que, cada vez mais, o Estado se solidariza com o crime.
No filme, as milícias se espalham pelo Estado, controladas por agentes do Estado e aceitas (até apoiadas!) pelos mais altos escalões da administração pública.
A sociedade, a imprensa e o herói caveira não vêem isso. Ninguém é capaz de perceber que o problema nunca foram os magrinhos.
É preciso que um “intelectualzinho de esquerda, ativista dos direitos humanos e suposto defensor de bandidos”, o agora deputado Fraga, chame a atenção para o novo fenômeno.
Ao contrário do coronel Nascimento, o deputado-historiador Fraga, na verdade, sabe que o problema das milícias é apenas a manifestação de mais um sintoma de uma doença que, como um câncer ou uma síndrome de imunodeficiência, vai consumindo a sociedade fluminense e brasileira.
Fraga sempre soube que o problema não era o bandidinho de merda da favela. Ele sempre soube que não adiantava eliminar 10 mil favelados. Ele sempre soube que deixar os chefes das facções se matarem dentro de um presídio decrépito não resolveria. Ele sempre soube que a carnificina proporcionada pela polícia dentro das favelas não reduziria a violência.
Fraga sempre soube que o problema é mais profundo. Ele sempre soube que um sistema penitenciário falido é uma bomba-relógio (qualquer um que conhece a história das principais facções criminosas do Brasil, todas surgidas dentro de presídios, também saberia).
Fraga sempre soube que a polícia fluminense (e a brasileira como um todo) está corrompida de cima abaixo. Ele sempre soube que as leis brasileiras só funcionam para alguns, que elas só punem os pobres. Ele sempre soube que a tal impunidade que tanto se fala na imprensa só beneficia os ricos.
Aliás, Fraga sempre soube muitas outras coisas (apesar do filme não revelar isso, eu imagino que ele sempre soube de várias outras coisas). Ele sempre soube, por exemplo, que os políticos não se interessam por resolver os problemas reais da população, porque é na pobreza, na necessidade e na ignorância que o clientelismo político se prolifera. É na desigualdade social que o sistema político se retroalimenta e que os políticos se reelegem infinitamente.
Fraga sempre soube que a sociedade brasileira é uma sociedade doente. Ele sempre soube que não adianta vigiar apenas os pobres e tapar o olho para as ilegalidades cometidos pelos ricos e poderosos. Ele sempre soube que caveirão não entra em condomínio de luxo para prender traficantes.
Fraga sempre soube que uma pessoa ferida na zona sul choca muito mais a imprensa (e consequentemente a sociedade) do que uma chacina de 30 mortos na Baixada Fluminense. Ele sempre soube que banqueiros e deputados nunca vão presos (e que seus processos sempre são prescritos antes do julgamento). Ele sempre soube que políticos bandidos dificilmente terão suas candidaturas cassadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Ele sempre soube que as autoridades governamentais manipulam dados, falseiam a realidade, entorpecem a sociedade com uma falsa ideia de um Rio pacificado, mesmo que o estado viva um caos.
Ele sabe que não adianta ficar contando corpos aos milhares nas favelas, enquanto todo a polícia, a Justiça, a política, as instituições públicas existirem para defender interesses particulares.
Fraga não é burro. Fraga sempre dedicou sua vida a tentar entender a sociedade. Fraga tem uma visão mais ampla da segurança pública.
O problema é que Fraga é uma voz minoritária. Ele não consegue fazer com que sua voz reverbere fora da universidade. Ele não consegue fazer com que o povo compreenda seu pensamento. Ele não consegue nadar contra a maré do senso comum, das notícias policiais simplistas, dos programas sensacionalistas da TV, da visão predominante no botequim, do discurso governamental.
Por isso Fraga (visto equivocadamente pela sociedade como um defensor de bandidos) foi capaz de ver o fenômeno das milícias, foi capaz de ver quem eram os verdadeiros bandidos. Coisa que o coronel caveira e a sociedade não conseguiu ver de início.
Nascimento vai acordando para a verdade aos poucos, ao começar a perceber que os inimigos não eram os magrinhos da favela, mas seus colegas de Secretaria, seus subordinados na polícia, o comandante-em-chefe do estado do Rio de Janeiro (em busca de reeleição) no Palácio Guanabara.
Nascimento desperta de vez quando seu filho é fuzilado dentro do carro e quando ele próprio é alvo de um atentado promovido por policiais, a mando do ex-secretário de Segurança (e candidato a deputado federal).
Então, como se livrasse dos grilhões e saísse da caverna do mito de Platão, Nascimento acorda. Ele vê que o “intelectualzinho defensor de bandido” estava certo. Ele então decide abrir o jogo e aceita depor na CPI das Milícias.
Num final devastador, Tropa de Elite 2 mostra um coronel caveira matador se lamentando por ter sido usado como um peão num jogo de xadrez que não tem fim e no qual a sociedade e a verdadeira polícia nunca sairão ganhando. Por mais que centenas de peões policiais matem milhares de peões bandidos, os reis e rainhas nunca serão colocados em xeque.
Então, coronel Nascimento (com mais mortes nas costas do que Jason, Alien e o Predador juntos) se pergunta, como que num dilema Hamletiano: Por que matei tanta gente? Para quem matei toda essa gente?
A resposta é: Nascimento matou toda aquela gente para que o jogo sujo de faz-de-conta continuasse. As autoridades de segurança fingem que resolvem o problema matando bandidos e inocentes, ocupando favelas, fazendo operações policiais, instalando Unidades de Polícia (pseudo)Pacificadora, para que toda a sujeira continue acontecendo. Para que os esquemas de corrupção continuem ocorrendo. Para que o dinheiro para a campanha continue entrando nos cofres dos candidatos. Para que a sociedade ache que o problema está sendo resolvido. Para que deputados, prefeitos, senadores e governadores continuem sendo eleitos e reeleitos.
Então, Nascimento encerra o filme com uma pergunta que bate como um verdadeiro soco no estômago dos fluminenses (principalmente duas semanas depois do resultado de uma eleição estadual): quem é o culpado por isso tudo?
Afinal, quem mantém todo esse sistema funcionando? Quem vai manter esse sistema por pelo menos mais quatro anos? Quem é capaz de mudar o sistema com o simples teclar em uma urna eletrônica?
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É Vitor... E sabe o que ouvi qd saí da sala? "Tem que matar todo mundo mesmo. Não interessa se é culpado ou inocente, tem que tocar fogo nos favelados (...) Favela não é bairro. Não são como nós, que pagamos impostos". Isso traduz bem o que chamam de "cidade partida", mas que eu ainda não tinha tido desprazer de vivenciar. A ignorância que alimenta o "sistema" é congênita e endêmica nesta cidade, chamada de maravilhosa, porém, 'maravilhosamente'ignorante.
ResponderExcluirEstava comentando com minha esposa e meus pais no final do filme. Tropa de Elite 2 é muito bom, mas duvido que 90% das pessoas tenham entendido a mensagem do filme...
ResponderExcluirExatamente. Pra estes 90% isso é pura ficção. Por isso discordei de gente que disse que se o filme passado antes das eleições poderia mudar algo... Mudar o que? O país das maravilhas de Alice?
ResponderExcluirCaro Vitor,
ResponderExcluirMuito obrigado pela generosidade de me citar no seu blog, que já é uma referência de opinião independente, ponderada e corajosa. Permita-me apenas observar que caberia uma chamada de Alerta de Spoiler, para não surpreender quem ainda vai ver o filme, ok? Grande abraço do admirador,
Jorge Antonio Barros
Muito boa a sua reflexão. Mas fica a dúvida? A população assim mesmo continua vendo o Nascimento como o grande heroi da historia? O que seria o Fraga então? Que bom que refizeram uma injustiça cometida no filme anterior que deturpava a imagem dos movimentos sociais. Mas uma vertente ainda continuou a ser mostrada nesse filme: que os Direitos Humanos defendem bandidos. Infelizmente a sociedade continua acreditando nisso sem entender que na verdade, defende os direitos de todos. Mas que bom que mesmo que como coadjuvante tenha surgido um novo heroi que, espero, seja entendido dessa forma por alguns. Mas para mim também ficou marcado as risadas com cenas de crueldade que aparecem. Como a nossa sociedade hoje esta deturpada.... é uma pena.
ResponderExcluirGrande Jorge, companheiro de imprensa e de blogosfera policial. Queria dizer que é uma honra ver um comentário seu aqui no blog. Nossas visões sobre segurança são um pouco divergentes, mas acho isso extretamemnte saudável porque é através do diálogo entre opiniões divergentes que se constroem as melhores soluções. Sou, acima de tudo, um grande admirador seu. Sobre o alerta de spoiler, eu até escrevi a frase "Sugiro a quem ainda não viu o filme que não leia este artigo, já que ele revela o final da história" sob o título do artigo, mas talvez não esteja chamativo o suficiente.
ResponderExcluirE Laine, acho que o filme, apesar de ter sido muito feliz na mensagem que passou, não conseguiu mudar o pensamento deturpado da esmagadora maioria dos espectadores em relação à segurança pública. Para a maior parte das pessoas, a solução é a mesma dos últimos 50 anos: resolver a violência através da violência, da brutalidade, do extermínio, do desrespeito aos cidadãos.
Maravilhoso tudo o que escreveu. Eu assisti ao filme ontem e saí do cinema pensando: porque esse filme não estreiou antes da eleição? Sei que muita gente não ia parceber, mas será que alguma parcela da população não teria votado de forma mais consciente??
ResponderExcluirÉ uma pena que nesse país não podemos confiar em quem deveria nos proteger, em quem deveria fazer a lei. E digo isso não só me referindo a polícia.
sim, mas temos uma doenca. enquanto vc nao acha a cura, vai a brir mao de combater os sintomas? Se de verdade se investisse em educaçao agora, so geracoes futuras receberiam o beneficio, mas e agora, como nos viraremos com os bandidos que estao ai acabando com nossas familias? tem que ser concomitante. como os de esquerda veem as coisas resolve-se o que? Enquanto o coletivo nao se resolve, como se resolve o individual? Nao se diz que uma vida perdida de um inocente numa operaçao a invalida toda? e as vidas perdidas dia apos dia. Nem tao ao sul nem tao ao norte. pensa-se assim bem de esquerda ate a violencia atingir um dos nossos... e ai chega-se ao equilibrio. entensde-se que muitas daquelas vitimas da sociedade poderiam ter escolhido outro caminho.
ResponderExcluir" Acordo num tenho trabalho, procuro trabalho, quero trabalhar
O cara me pede diploma, num tenho diploma, num pude estudar
E querem que eu seja educado, que eu ande arrumado que eu saiba falar
Aquilo que o mundo me pede não é o que o mundo me dá
Consigo emprego, começo o emprego, me mato de tanto ralar
Acordo bem cedo, não tenho sossego nem tempo pra raciocinar
Não peço arrego mas na hora que chego só fico no mesmo lugar
Brinquedo que o filho me pede num tenho dinheiro pra dar" gabriel o pensador ate quando
Concordo contigo, inconformado. Só defendo uma abordagem correta para se coibir o crime (e, acredite em mim, uma política séria de segurança pode ser encontrada em vários lugares do mundo, mas não no Rio de Janeiro). Eu já dei sugestões de ações preventivas e reativas de combate à criminalidade várias vezes aqui neste blog e no meu twitter...
ResponderExcluirDefendo também que, ao mesmo tempo em que o governo faz fanfarra com sua UPP nas favelas chiques e que mata cidadãos em favelas pobres, resolva os problemas estruturais. E isso é algo que não está acontecendo.
ps.: Não sou de esquerda. Não tenho partido político. Não me enquadro em qualquer ideologia partidária. Não defendo nenhum candidato. Tampouco defendo direitos humanos apenas por defender (ou porque sou altruísta). Defendo os direitos humanos, porque eu e minha família podemos ser vítimas de uma política estatal destrutiva (tanto quanto podemos ser vítimas de bandidos).
Exatamente, Jean. As pessoas precisam perceber que a polícia reflete os anseios dos políticos e da própria sociedade. Se a sociedade pede uma "máquina de guerra" (como diz o coronel Nascimento no filme), ela terá uma máquina de guerra.
ResponderExcluirSe essa máquina de guerra por acaso fugir do controle, ela não pode culpar apenas a própria máquina, mas principalmente aqueles que possuem o efetivo controle sobre ela.
E Tha_ta, obrigado pela visita ao blog. Infelizmente creio que a população não mudaria seu voto por causa do filme. Um filme é muito pouco para mudar uma visão deturpada da sociedade. Minha esperança é que os conceitos da sociedade possam mudar, pelo menos, aos poucos, para que meus filhos e netos possam viver num mundo melhor.
Concordo em gênero número e grau com seu comentário tanto é que foi o que comentei que ninguém esperava que no fim do Filme Capitão Nascimento estaria junto com o pessoal dos direitos humanos. Mas a mudança de pensamento dele veio de antes do que aconteceu com o filho dele e sim quando notou que as testemunhas iam sumindo
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