domingo, 10 de abril de 2011

O massacre em Realengo e o direito de possuir uma arma de fogo: por uma rediscussão do comércio de armas no Brasil

Ao se analisar o atentado cometido pelo atirador Wellington de Oliveira na Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, tem-se uma primeira impressão de que o caso não é um problema de segurança pública. Claro, não há como autoridades públicas de segurança e policiais evitarem que qualquer pessoa cometa um assassinato quando ela assim o desejar.

Não há como ter policiais onipresentes em todos os lugares da cidade, do estado, do país. Para conseguir isso, teríamos que ter, pelo menos, um policial acompanhando cada cidadão 24 horas por dia, o que exigiria que pelo menos 50% da população fossem policiais.

Essa impressão, no entanto, logo se desvanece quando vemos como o assassinato foi cometido. O assassino tinha dois revólveres (calibres .32 e .38) e possuía mais de 60 munições para perpetrar as mortes.

A pergunta que todos estão se fazendo nesse momento é: como o assassino conseguiu as armas? Especialistas entrevistados por emissoras de televisão e por jornais afirmam: como qualquer cidadão que queira ter acesso a uma arma, basta ter dinheiro e pagar.

As armas estão em todo lugar no Brasil. Armas compradas na década de 70, 80 e 90 continuam circulando entre nós. E, anualmente, mais de 100 mil novas armas, como revólveres e pistolas, entram nas ruas brasileiras, recém saídas das fábricas brasileiras principalmente.

Mais de 600 lojas estão autorizadas a vender armas hoje no país, segundo o Exército. Inclusive algumas que comprovadamente vendiam armas a bandidos, como comprovou em 2006 a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Armas da Câmara dos Deputados.

Em 2009, a indústria de armas do Brasil produziu mais de um milhão de peças, um recorde para a década. A verdade é que não há um controle efetivo desse comércio no país, por mais que o Exército diga que realiza milhares de vistorias anualmente.

No ano passado, fiz uma reportagem com a Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército (DFPC). Um oficial do órgão me disse que, apenas em um ano, foram abertos mil processos por irregularidades (isso mesmo “MIL” processos) como a existência de estoques maiores do que os permitidos dentro das lojas.

Uma delegada da Polícia Federal foi entrevistada e disse que os dois sistemas responsáveis pelo controle do comércio de armas, o Sinarm (da PF) e o Sigma (do Exército), não dialogavam entre si.

Ela reclamou que o Exército não dava aos policiais federais acesso ao seu sistema, apesar de um decreto federal de 2004 (que regulamentava o Estatuto de 2003) determinar que a integração dos dois sistemas ocorresse até julho de 2005. E, cinco anos depois, nada.

O Exército é o responsável pelo controle das lojas, mas ninguém controla a saída da arma desse estabelecimento. O controle da Polícia Federal é simplesmente cartorial. Ela emite o documento que autoriza ao cidadão comprar a arma.

As lojas, teoricamente, só podem vender a arma se o cidadão apresentar o documento da PF ou do Exército, mas não há uma garantia real de que a loja procederá dessa forma.

Os carregamentos de armas que saem das fábricas não são escoltados pelas autoridades competentes. A escolta é responsabilidade da própria empresa. Não há controle efetivo sobre as exportações das armas. Cerca de 900 mil armas foram declaradas como “exportadas” pelas fábricas brasileiras somente em 2009. Quem garante que essas armas realmente saíram do país.

A CPI de 2006 mostrou que armas inicialmente destinadas à exportação ficavam aqui mesmo no Brasil. Apenas as guias de exportação dessas armas (o que é efetivamente fiscalizado pelo Exército) viajavam nos contêineres. As armas ficavam em solo brasileiro.

Apesar de tudo isso, no imaginário popular, o problema está apenas no tráfico internacional de armas, como se os bandidos se abastecessem só de AR-15s, M-16s, HKs, CZs, Norincos e Rugers que aparecem de vez em quando nas operações policiais. Como se os bandidos se abastecessem apenas de armas estrangeiras, enquanto que a indústria nacional e as lojas legalizadas servissem apenas para abastecerem os cidadãos de bem com armas para que eles se “defendam” dos bandidos.

Meus caros, o tráfico internacional de armas é um problema, sim. Mas um problema talvez ainda maior seja o tráfico doméstico de armas. A maioria das armas apreendidas com criminosos é de revólveres e pistolas. E a esmagadora maioria dessas armas é nacional, bem como as munições usadas nelas.

As armas nacionais, como se vê, são teoricamente reguladas pelo Exército e pela Polícia Federal. No entanto, essas mesmas armas pipocam nas mãos de criminosos e são usadas para os mais variados crimes. Como elas vão parar lá?

Bem, quem defendeu a continuidade do comércio de armas para civis no país, no referendo de 2005, deve saber me explicar.

Os defensores do comércio de armas (em geral, deputados linha-dura ou que recebem dinheiro da indústria de armas nas eleições) citam o seguinte argumento para defender o comércio de armas: os bandidos estão armados, então o cidadão “de bem” tem direito a possuir uma arma para defender sua família e sua propriedade.

Bem, os defensores do comércio de armas partem do pressuposto que é simples distinguir um “bandido” de um “cidadão de bem”, como se fossem duas categorias estáticas. Quem garante que um “cidadão de bem” não será um bandido no futuro? Eu não posso garantir. Os defensores das armas podem? A PF pode? Creio que não.

Os dois bandidos que venderam a arma a Wellington de Oliveira disseram que ele parecia ser um “cidadão de bem” e que jamais imaginavam que ele fosse se tornar um assassino em série. Bem, o fim da história todos conhecem.

Em segundo lugar, quem garante que o “cidadão de bem” cuidará bem de sua arma? Quem garante que ela não será roubada (tudo é roubado nesse país, por que não uma arma)? E quem garante que, quando o dono da arma morrer, seu filho ou genro ou esposa não venderá sua arma para um outro cidadão “não tão do bem assim”?

Em terceiro lugar: qual a definição de defesa da família e da propriedade? Todos nós temos a mesma percepção do conceito de “defesa da família”? Qual o limite entre a defesa pessoal e a violação da liberdade de um terceiro? Quando acaba a defesa pessoal e começa o ataque a outra pessoa?

Se eu acreditar que tenho mais direitos que o meu vizinho, posso usar minha arma para defender meus interesses, mesmo que isso fira os direitos do meu vizinho.

Numa briga de trânsito, se eu achar que vou levar uma porrada, saco minha arma e atiro covardemente no agressor. Numa briga de bar, a mesma coisa.

Se eu for um agressor doméstico e achar que minha mulher está passando dos limites, posso usar minha arma e dar um tiro nela para me defender? Se eu tiver bebido pinga além da conta, posso dar um tiro no outro bêbado do bar? Se um moleque pular meu muro para pegar a bola que caiu dentro do terreno, posso dar uns “tecos” nele? Se meu vizinho estiver com o som alto e não quiser baixar o volume, posso enchê-lo de tiros, em vez de chamar a polícia?

Se um mendigo se aproximar de mim para pedir dinheiro e eu achar que ele vai machucar meus filhos, posso sacar a arma e “passar o vagabundo”?

Bem, os defensores do direito ao uso de arma pelos cidadãos devem ter resposta para todas essas perguntas.

Ao dizer que o “cidadão de bem” (olha ele de novo aí) tem direito de se defender do bandido armado, os políticos defensores das armas ignoram duas coisas. A primeira é: de onde vem as armas usadas pelos bandidos? Essa é uma discussão que nenhum deles quer fazer. Para eles, os bandidos simplesmente devem estalar os dedos e, “plim”, uma arma aparece nas mãos deles. Como se elas não tivessem um dia, passado pelo mercado formal: seja pela indústria seja pelo próprio comércio (seja no Brasil, seja no exterior).

A segunda é: os políticos ignoram a existência da polícia, ao afirmar que o cidadão tem direito de se defender. Bem, pelo que me consta, a polícia existe para garantir um equilíbrio na sociedade e evitar que dois cidadãos armados resolvam suas desavenças a bala.

Se a polícia brasileira não funciona, por que então os políticos não discutem uma reforma dessa polícia? Não seria função dos nossos políticos fazer isso? Se eles acham que a polícia brasileira não serve para defender o cidadão, então que ela seja extinta e que cada cidadão ganhe uma arma do governo. Será que essa sociedade vai funcionar? Ou será que o caos vai se instalar?

Bem, os defensores do comércio de armas devem ter uma boa resposta para isso.

Enfim, precisamos rediscutir o comércio de armas no país e o tal “direito individual” do cidadão possuir uma arma. Precisamos também discutir o controle dos arsenais das polícias e das forças armadas, a fiscalização dos depósitos de armas apreendidas (por que elas não são destruídas?), a revenda de armas para criminosos por agentes da lei, o controle dos caçadores, atiradores e colecionadores de armas.

Precisamos discutir várias coisas. Mas não podemos fazer isso apenas quando acontece um desastre como o que aconteceu em Realengo. Precisamos discutir isso até que se acabe essa carnificina que existe no Brasil.

Um comentário:

  1. Proibir o comércio de armas no Brasil não vai resolver a situação pois no crime tudo se readapta pois tem muito dinheiro envolvido nisso.E o que impediria que aquele assassino invadisse a escola portando uma faca ou objeto perfurante o estrago poderia ser até maior pois não haveria o estampido dos disparos para alertar outras pessoas.
    Não sou a favor de armas, apesar de poder possuir uma e até porta-la nas ruas, abri mão do meu direito.
    Creio que o problema da violencia no Brasil envolve muitas coisas além do comercio de armas, pois vemos que em muitos paises desenvolvidos onde armas são compradas livremente, a violência é muito menor que no Brasil. Isso vai da educação do povo, não das armas. Um ato como este não se resolve com a proibição do comercio legal de armas, pois garanto que se as armas de fogo não existissem no mundo, massacres como esse ainda aconteceriam.

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