Dados não confiáveis da Secretaria de Saúde sobre mortes violentas no Rio de Janeiro mostram indícios de manipulação de informações no governo do Rio
Todos que acompanham meu blog conhecem minha posição de ceticismo em relação aos dados de criminalidade do estado do Rio de Janeiro, divulgados pelo governo estadual, através do Instituto de Segurança Pública (ISP).
Desde que os dados do ISP começaram a mostrar quedas milagrosas do número de homicídios, sem qualquer explicação plausível, passei a não acreditar mais nessas informações.
Nesta semana, passei a ter certeza de que os dados compilados pelo governo do estado não são confiáveis. Ao analisar os dados sobre mortes violentas da Secretaria Estadual de Saúde, que são repassados ao Ministério da Saúde para a consolidação das estatísticas de mortes violentas no país, notei que, desde 2007 (primeiro ano do governo de Sérgio Cabral), o número de mortes cuja intenção é indeterminada disparou.
Ao mesmo tempo em que essas mortes aumentaram de forma considerável e o número total de mortes violentas (que inclui homicídios, suicídios, acidentes e intenção desconhecida) permanece relativamente estável, os registros da Secretaria Estadual de Saúde vêm curiosamente mostrando "menos homicídios".
Os dados já repassados ao Ministério da Saúde apontam uma queda de 22,2% nos homicídios entre 2008 e 2009, enquanto que o total de mortes violentas no período caiu apenas 2,4%. Mas também mostram um aumento expressivo de 73,2% nas mortes por causas externas sem intenção determinada (ou seja, quando não se sabe se foi homicídio, suicídio ou acidente).
Em 2008, a Secretaria Estadual de Saúde repassou informações sobre a ocorrência de 5.395 homicídios e de 3.261 mortes sem intenção determinada (de um total de 14.480 mortes violentas). Em 2009, foram repassados os registros de apenas 4.198 homicídios ante 5.647 mortes de intenção desconhecida (de um total de 14.136 mortes violentas).
Como estava fazendo uma reportagem sobre isso para a Agência Brasil, entrevistei um dos maiores especialistas em estatísticas criminais do país, o sociólogo Ignacio Cano, subcoordenador do Laboratório de Análises da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Ele disse que o número de mortes violentas sem intenção determinada tem aumentado, sem motivo aparente, nos últimos anos no Rio. Olhando os dados da Secretaria Estadual de Saúde (publicados no site do Ministério da Saúde), é possível perceber exatamente quando esse tipo de registro começou a aumentar: o ano de 2007, primeiro ano da era Cabral.
Em 2007 foram registradas nada menos do que 3.191 ocorrências de mortes de intenção desconhecida, 90,4% (ISSO MESMO, QUASE 100%) a mais do que em 2006, quando foram registrados 1.676 óbitos. Em 2008, o número chegou a 3.261.
Juntamente com esse aumento, houve uma queda nas mortes registradas como homicídios, que reduziram 11,3% de 2006 para 2007 (que passou de 7.122 para 6.313 no período). Isso enquanto o total de mortes violentas aumentava de 14.961, em 2006, para 15.234, em 2007.
O número de mortes sem intenção determinada nos últimos anos é alto mesmo se comparado com a média de 2000 a 2006, que oscilou entre 1.446 (em 2004) e 2.047 (em 2003).
É incrível como uma manobra estatística consegue resultados incríveis. Isto é, tire as mortes de uma categoria indesejável ("homicídios"), coloque-os em uma categoria neutra ("mortes de intenção indeterminada") e pronto: um milagre acontece.
Mas por quê a Secretaria de Saúde manipularia os dados com o objetivo de diminuir os registros de homicídios no estado? Simplesmente porque os dados de saúde são usados por especialistas de todo o Brasil para confirmar se as estatísticas de homicídios divulgadas pelas polícias e institutos de segurança são confiáveis ou manipuladas.
Por exemplo: se o ISP divulgar que houve 5.500 homicídios em 2009 e a Secretaria de Saúde divulgar que houve 6 mil assassinatos, todos descobrirão que os dados do ISP ocultaram 500 homicídios.
Mas se a Secretaria de Saúde reduzir os números de homicídios em suas estatísticas e jogar essas mortes "extras" para a categoria "óbito cuja intenção é indeterminada", isso poupará o ISP de ter que passar por uma situação constrangedora.
Segundo Ignacio Cano, a tendência seria que os casos de intenção indeterminada diminuíssem com o passar dos anos, por conta da evolução de metodologias.
“Historicamente, nos anos 90, a proporção de mortes com intenção desconhecida era muito alta. Aí a Secretaria de Saúde fez um esforço muito grande para diminuir esses dados. Por exemplo, se tinha dois disparos, não podia mais ser suicídio, então já era homicídio. Com isso, se conseguiu reduzir bastante o número de casos de intenção desconhecida. E esse crescimento recente é surpreendente, porque a tendência era uma melhora no Brasil e no Rio”, afirmou Cano.
As estatísticas de 2009 da Secretaria de Saúde, ainda que sejam preliminares (os dados só fecham no segundo semestre deste ano), são tão absurdas que o número de óbitos com intenção indeterminada representou cerca de 40% do total de mortes violentas naquele ano.
Só para efeito de comparação, entre 2000 e 2006, a média de mortes com intenção indeterminada variou de 10% a 13% do total de mortes violentas. Em 2007 e 2008, o percentual já subiu para 21% e 22%, respectivamente.
“Fico até muito preocupado porque num contexto como esse, em que os dados da polícia mostram uma queda bastante pronunciada dos homicídios, a gente precisa confirmar isso com os dados da saúde. Mas se os dados da saúde vêm com problema, a gente fica muito preocupado. A gente usa os dados da saúde para validar os dados das polícias. Então, quando os dados da saúde têm um problema, é um duplo problema”, disse o sociólogo.
O fato dos dados de 2009 serem preliminares não explica, por si só, a situação do Rio de Janeiro, já que o estado foi o único entre as 27 unidades da federação que apresentou mais registros de mortes violentas sem intenção determinada do que registros de homicídios.
Quando analisadas as 5.647 mortes sem intenção determinada no estado do Rio em 2009, pelo menos 874 foram provocadas por disparos de armas de fogo. Em nenhum outro estado, tantas mortes por armas de fogo foram catalogadas como “de intenção indeterminada”. Mesmo no estado do Rio de Janeiro, nos anos anteriores, esse número foi bem inferior.
Entre 2004 e 2006, esses registros foram de 233, 248 e 146, a cada ano. Em 2007 e 2008, já houve um aumento das mortes por arma de fogo de intenção desconhecida: 442 e 462, respectivamente.
Segundo uma fonte do Ministério da Saúde, a Secretaria de Saúde do Rio já foi contatada para esclarecer o grande número de mortes sem intenção determinada e tem até o segundo semestre deste ano para corrigir ou manter os dados.
“Nos últimos anos, isso tem sido um problema no Rio de Janeiro. Tenho conversado com Brasília [Ministério da Saúde] e eles dizem que alguns estados, mais especificamente o Rio de Janeiro, têm tido problemas com qualidade das informações”, disse Ignacio Cano, que trabalha comparando os dados de homicídios do Ministério da Saúde com aqueles informados pela polícia.
Para a reportagem, fui, então, consultar a responsável por esses dados, no mínimo estranhos (para não dizer manipulados): a Secretaria Estadual de Saúde.
Para minha surpresa, a Secretaria reconheceu que há um "problema" com seus dados. Mas disse que o problema se origina nos atestados de óbito, vindos dos Institutos Médico-Legais (IML).
A Secretaria Estadual de Saúde informou, então, a solução que resolveu adotar: fez um acordo com o ISP para decidir o que é homicídio e o que não é.
Ora, os dados da saúde deveriam ser independentes, justamente para serem usados como "prova real" em relação aos dados do ISP. Mas se é o ISP que vai dizer o que é homicídio e o que não é, para que servirão esses dados da Secretaria de Saúde? Bastará usar os dados para lá de suspeitos do ISP.
A Secretaria de Saúde não esclareceu, no entanto, porque o número de mortes de intenção desconhecida quase dobrou entre 2006 e os anos de 2007 e 2008 (período da atual gestão da Secretaria de Saúde).
Por que não havia tantos problemas na identificação dos homicídios no período anterior a 2007? Por que o problema só começou no governo de Sérgio Cabral?
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