terça-feira, 25 de outubro de 2011

Pesquisador do Ipea usa matemática para descobrir 3 mil homicídios que não aparecem nas estatísticas de criminalidade do Rio

Nesta semana, o economista Daniel Cerqueira, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), divulgou um estudo em que contesta as estatísticas de homicídio da Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro. O pesquisador informa que, desde 2007, primeiro ano do governo Sérgio Cabral, as mortes violentas sem intenção determinada (isto é, quando não são classificadas como agressões, suicídios ou acidentes) aumentaram de forma exponencial. Trata-se de um fenômeno quase que exclusivo do Rio de Janeiro, o estado “pacificado”.

Na verdade, a pesquisa é uma repercussão de um levantamento que eu fiz, em maio, para a Agência Brasil, com base em dados do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde. Reportagem que foi repercutida pelo jornal O Estado de S.Paulo, em junho.

Claro, Cerqueira deu também uma grande contribuição, ao aplicar um modelo matemático e estatístico para determinar quantas dessas mortes de intenção indeterminada seriam, na verdade, homicídios.

Eu, como jornalista desconfiado que sou, vivo fuçando os dados do SIM. Um belo dia, percebi que os dados enviados pela Secretaria de Saúde do Estado do Rio ao Ministério da Saúde estavam “estatisticamente” estranhos. Não sou matemático ou estatístico, mas os anos que passei na escola técnica me ensinaram a fazer algumas contas.

Percebi que o número de homicídios do Rio de Janeiro estavam absurdamente baixos em 2009, tanto em relação aos outros estados quanto em relação aos próprios dados do Instituto de Segurança Pública (que, a meu ver, também vêm andando absurdamente baixos para o padrão fluminense).

Ao mesmo tempo, reparei que as mortes violentas sem intenção determinada estavam absurdamente altas. Ora, pensei. Tem algo cheirando mal por aqui. Olhei com mais calma os dados e percebi que coincidentemente, desde 2007 (ano zero d.C., isto é, depois de Cabral) as mortes violentas de intenção indeterminada vinham crescendo no estado, ao mesmo tempo em que dados de homicídio vinham convenientemente sendo reduzidos.

Ora, é muito conveniente parar de registrar cadáveres como homicídio e passar a registrá-los como mortes cuja intenção não “pôde ser” determinada. Mortes registradas sob essa categoria não incomodam o governo, afinal não aparecem nas estatísticas de criminalidade e dão a impressão ao eleitor (ops, ao cidadão) de que o Rio está sendo “pacificado”.

Na minha reportagem da Agência Brasil, não pude fazer qualquer análise interpretativa dos dados. Tive que me ater à crueza dos dados e a ouvir os lados envolvidos. No caso, ouvi um dos maiores especialistas em dados de criminalidade do Brasil, o professor Ignacio Cano, da Uerj, e a Secretaria de Saúde do Rio, responsável pelos dados, que surpreendentemente reconheceu que seus dados estavam “com problemas”.

A Secretaria disse que o problema, no entanto, advinha dos Institutos Médico-Legais, que não especificavam, no atestado de óbito da vítima, se ela fora morta acidentalmente, se ela fora assassinada ou se havia se suicidado.

No post que escrevi aqui no blog, pude fazer minhas considerações sobre os dados “problemáticos” da Secretaria de Saúde do Rio. Escrevi que havia indícios de manipulação das estatísticas e que, possivelmente, a culpada era a própria Secretaria. Afinal, em última instância, era ela a responsável por compilar os dados e repassá-los ao Ministério da Saúde.

Disse, em meu post, aqui no blog, que era muito conveniente, para o governo do estado do Rio, reduzir o número de homicídios através do aumento das mortes sem intenção determinada (uma categoria de mortes neutra, uma vez que não integra as estatísticas de criminalidade).

E, como a Secretaria de Saúde está a serviço do governo do Rio, era bem plausível que ela, cumprindo ordens superiores, manipulasse os dados de mortes violentas para evitar constrangimentos ao governador fluminense, Sérgio Cabral, e ao secretário de Segurança, José Mariano Beltrame.

É claro que essa é apenas uma teoria. Não há como comprovar que a manipulação dos dados seja intencional. E, ainda que os dados sejam intencionalmente manipulados, não há como dizer quem são os responsáveis por isso.

Já Daniel Cerqueira acredita que a origem da distorção dos dados de mortes violentas está no trabalho dos peritos da Polícia Civil, cujo trabalho é determinar a causa e a intenção da morte. Sua hipótese é também bem baseada. Afinal, aos policiais civis, interessa que sejam registrados menos homicídios.

Quanto menos assassinatos forem registrados, mais se tem a impressão de que a polícia está no caminho certo. Se a polícia está no caminho certo, não há necessidades em fazer mudanças, em modificar comandos, em mexer em privilégios, em acabar com vícios.

E, desde julho de 2009, graças à política de metas da Secretaria de Segurança, menos assassinatos registrados também representam mais dinheiro no bolso dos policiais, já que aqueles policiais que alcançam as metas recebem gratificações em seus salários.

Faz sentido que policiais, sejam das delegacias sejam das unidades especializadas e técnicas, desejem registrar menos assassinatos. Além do mais, policiais podem querer acobertar atividades criminosas cometidas por colegas, que integrem máfias, milícias ou grupos de extermínio.

Há ainda a falta de pessoal, a carência de equipamentos e a ausência de programas de qualificação dos peritos. Tudo pode influenciar um trabalho mal feito dos peritos. Mas essa também é uma hipótese. Assim como a teoria da manipulação pela Secretaria de Saúde, não pode ser comprovada no momento.

Mas, neste momento, nem acho que seja tão importante descobrir a origem do problema (acho que isso seja importante, sim, num segundo momento, a fim de que o problema seja corrigido e os eventuais culpados, punidos).

O que é fato, inegável, é que os dados de mortes violentas no estado do Rio estão incorretos. Eles estão subestimando homicídios e superestimando as mortes sem intenção determinada. Se formos somar os homicídios com as mortes de intenção indeterminada no estado, não veremos qualquer evolução na segurança pública do Rio de Janeiro entre 2006 e 2009.

Em 2009, além dos mais de 5 mil assassinatos registrados como homicídios pela Secretaria de Saúde, Daniel Cerqueira encontrou outros 3 mil assassinatos que estavam “ocultos”, sob a nomenclatura de “mortes de intenção indeterminada”.

Independentemente de se a manipulação ocorre no departamento de polícia técnica ou na Secretaria de Saúde, o problema é do governo do estado (já que tanto a polícia técnica quanto a Secretaria de Saúde são subordinadas ao governo estadual).

Além disso, os dados nos mostram que o cenário de insegurança pública do Rio não teve nenhuma evolução no governo de Sérgio Cabral e na gestão de José Mariano Beltrame. Continuamos com números altíssimos de homicídios no estado, entre 2007 e 2009.

ps.: Li hoje que o secretário Beltrame disse ao Jornal O Globo que, depois da pesquisa do Ipea, resolveu analisar a fundo os dados de mortes violentas no estado. Segundo o Globo, Beltrame disse que a transparência dos dados de criminalidade é uma “prioridade” de seu governo.

Me responda uma coisa, Beltrame. Se eu, um pobre repórter, percebi que os dados de seu Instituto de Segurança e da Secretaria de Saúde eram uma lástima, como o senhor, o todo-poderoso czar da segurança pública, não tinha percebido isso ainda?

Foi preciso que um repórter do Globo ligasse para sua assessoria de imprensa, para que o senhor decidisse fazer uma devassa nos números? Ainda que o senhor, por conta própria ou com a ajuda de gabaritados técnicos de sua secretaria, não tivesse percebido as inconsistências dos dados da Saúde e do ISP, que vêm desde 2007, o senhor poderia ter lido a reportagem da Agência Brasil, que repercutiu em maio em diversos sites e jornais do país, ou a matéria do Estadão, publicada em junho.

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