Recentemente tivemos o desprazer de ver dois casos de bandidagem em altos escalões da hierarquia pública do nosso país. Um deles ocorreu no círculo político do longínquo estado do Amapá, no extremo norte da Amazônia brasileira, envolvendo a cúpula do governo estadual. O outro mostra um esquema de corrupção na cúpula da Superintendência fluminense da Polícia Rodoviária Federal.
No primeiro, temos uma quadrilha, composta por governador e ex-governador, suspeita de desviar R$ 300 milhões em recursos públicos que deveriam ser investidos na educação básica no estado do Amapá. Só para se ter uma idéia, R$ 300 milhões equivale a 11% do PIB do setor público no estado amazônico (estimado em R$ 2,7 bilhões, segundo dados de 2007 do IBGE).
Isso significa que uma quadrilha de pessoas, cuja função era zelar pelo bem comum e defender os interesses da população do Amapá, confiscou 11% do dinheiro que poderia tornar melhor a vida de 630 mil pessoas.
Bem, essa quadrilha, formada, segundo a Polícia Federal, por 18 marginais, que roubou R$ 300 milhões do meu, do seu, do nosso bolso, ficou presa por alguns dias e foi solta. Os chefes do bando (segundo a Polícia Federal), nada menos do que o governador do estado e o ex-governador (hoje candidato ao Senado), voltaram ao estado.
O governador reassumiu o governo do estado, como se nada tivesse acontecido, e deve reassumir sua campanha pela reeleição (provavelmente custeada pelo dinheiro que foi desviado do Fundeb e do Fundef). O ex-governador também provavelmente vai reassumir sua campanha ao Senado, sem qualquer pudor.
Já no segundo caso, temos uma quadrilha de policiais rodoviários federais, ou seja, pessoas armadas e equipadas com o dinheiro do contribuinte. Nada menos do que dez pessoas, entre elas o superintendente regional do Rio de Janeiro, tiveram suas prisões preventivas decretadas pela 1a Vara Federal Criminal do Rio, por crimes como formação de quadrilha, corrupção (quando o agente pede ou aceita propina), concussão (isto é, quando o agente exige a propina) e prevaricação (quando o agente deixa de cumprir com sua função, permitindo que o crime seja cometido).
Investigações do Ministério Público Federal mostram que o esquema criminoso permitia a infratores da lei retirarem seus veículos irregulares de um pátio da Polícia Rodoviária, com o aval dos agentes públicos.
Além disso, um dos agentes, que concorre a um cargo político nessas eleições, permitia que os veículos apreendidos fossem usados em comunidades carentes com vistas a se promover politicamente nesses currais eleitorais. Outra acusação é que esse mesmo policial rodoviário usava carros e recursos da PRF em sua campanha eleitoral.
A denúncia do MPF mostra ainda outros crimes, como a liberação de um comerciante chinês com dinheiro suspeito, mediante o pagamento de uma propina de R$ 10 mil para financiar a campanha do agente.
Já os chefes desse policial faziam vista grossa para as atitudes sem limite do marginal, a fim de que pudessem lucrar com a eleição do bandido. Pelo menos é isso que diz a denúncia do Ministério Público, que foi aceita pela Justiça Federal.
Os dois casos revelam algo que todos já sabemos. O Brasil é um país corrupto. A corrupção está em todas as esferas da nossa sociedade. Está na política, na polícia, na Justiça, nas forças armadas, nos órgãos públicos, nas organizações comunitárias, nas famílias, nas relações individuais. Enfim está em todo lugar.
Nós, brasileiros, somos afetos à corrupção. Afinal, não só recorremos rotineiramente a ela como também ficamos impassíveis quando esquemas de desvio de dinheiro público ou de cobrança de propina se descortinam ante nossos olhos.
No caso do Amapá, por exemplo, é chocante não só ver que governador e ex-governador são soltos depois de ficarem apenas uma semana presos, como os dois acusados são recebidos com festa por 20 mil pessoas ao chegarem em seus estados.
São 20 mil pessoas comemorando a soltura e a volta para casa de alguém que é acusado de roubar dinheiro de seu bolso, dinheiro que seria usado para dar educação e um futuro melhor a seus filhos.
É como se você tivesse sua casa arrombada por um bandido e todos seus bens, surrupiados. E, depois de uma semana, recebesse esse bandido com uma grande feijoada em sua homenagem. E mais, ainda aceitasse que esse mesmo bandido voltasse a gerenciar suas economias e suas vidas.
É realmente assombroso ver também, por exemplo, como um deputado federal do maior estado brasileiro, acusado em diversos processos de desvio de verbas públicas e envio desse dinheiro para contas em paraísos fiscais.
E esse mesmo deputado não só circula solto pela nossa sociedade como é eleito e reeleito para representar as mesmas pessoas que foram roubadas por ele na Câmara dos Deputados. E o pior, esse deputado nunca é condenado, porque seus processos caducam no vagaroso (de forma proposital) trâmite das altas cortes do país.
Não podemos nos esquecer das últimas denúncias de tráfico de influência dentro da Casa Civil, o braço direito da Presidência da República. Os exemplos de corrupção e imoralidade no país são infinitos. Vão desde o atropelador assassino que aceita pagar propina para o policial militar não prendê-lo até o filho de ministro que se usa do cargo da mãe para lucrar milhões, às custas do povo brasileiro.
Temos, portanto, duas constatações tristes sobre a corrupção no nosso país. A primeira é a impunidade, que, em geral, beneficia apenas aqueles que tem poder político e econômico no nosso país. A segunda é a relação amistosa (e até amorosa) que o povo brasileiro tem com a corrupção.
Uma das explicações para isso estaria no fato de que o Estado brasileiro nunca existiu de fato. Desde os tempos da colônia, em que fomos divididos em capitanias hereditárias (e privadas) somos um país dominado por interesses particulares.
Em minha opinião, o Estado brasileiro nunca funcionou com o objetivo de proporcionar o bem-estar da sociedade. O Brasil sempre serviu aos interesses daqueles que detêm o poder econômico e político no país.
São as obras milionárias voltadas para enriquecer empreiteiras (e políticos), são os projetos e emendas direcionados para favorecer os financiadores de campanha, são as decisões judiciais que beneficiam amigos e aqueles que podem comprar sentenças, são os hospitais públicos mantidos na pindaíba a fim de favorecer o mercado planos de saúde, é a falta de investimento em transporte alternativo para beneficiar as empresas de ônibus, é a entrada de pessoas nas estruturas públicas para buscar benefícios pessoais, é a imunidade parlamentar, é a prisão especial para quem tem ensino superior, é a inviolabilidade do juiz etc.
Os exemplos de interesses particularistas que dominam o Estado brasileiro são inúmeros e não faz sentido ficar enumerando-os todos aqui.
O que importa aqui é que isso vem sendo feito aqui no país há anos. Ou melhor, há séculos. E séculos de uso do Estado para servir a interesses particulares (de quem tem poder político e econômico) servem para minar a credibilidade de qualquer nação perante seus cidadãos.
Quem, no Brasil, pode acreditar no Estado quando o Estado serve como uma agência reguladora de interesses privados, que usa a propina e a barganha política como suas moedas oficiais?
Ninguém além daqueles poucos que se beneficiam dessa situação. A grande maioria da população não enxerga o Estado brasileiro como um representante legítimo de seus interesses e nem acredita que esse Estado sirva para garantir seus direitos fundamentais à educação, saúde, moradia, segurança, trabalho e à vida.
O que me assusta, no entanto, é que, em vez dessa grande maioria da população (que, apesar de não acreditar no Estado, o mantém funcionando com seus impostos e seus votos), se levantar e exigir que esse Estado funcione, que seus órgãos cumpram a lei e que seus representantes defendam seus interesses, ela parece querer participar do jogo-sujo.
Sem conseguir o atendimento adequado do Estado e sem receber o mesmo tratamento que o supercidadão (aquele que tem o poder político e econômico), o cidadão comum tenta recorrer às moedas oficiais do Estado Brasileiro (a corrupção, o jeitinho, a barganha política, a troca de favores, o tráfico de influência).
É o cidadão que molha a mão do PM para evitar ser multado, porque não conseguiu marcar sua vistoria do carro em tempo adequado. É o cidadão que pergunta se você conhece alguém naquela repartição pública para agilizar seu processo, já que o tempo oficial da burocracia é inacreditavelmente moroso. É o cidadão que troca seu voto para conseguir um encaminhamento cirúrgico, assinado por um político, porque a fila de espera das cirurgias naquele hospital público é gigantesca. É o cidadão que paga a propina para que a patrulinha da PM estacione em frente a sua loja, já que o Estado não garante sua segurança por meios normais.
O problema é que, ao recorrer ao jogo-sujo, o cidadão cria um círculo vicioso dentro do Estado brasileiro, onde tudo só se resolve pela via ilegal, pela via da propina. O cidadão perde a oportunidade de mudar a realidade social do país, perde a oportunidade de exigir o cumprimento do princípio constitucional de igualdade para todos.
Mas por que estou escrevendo sobre isso em um blog de Segurança Pública? Justamente porque eu acredito que a ineficácia do Estado, a corrupção, os privilégios concedidos a supercidadãos, o jogo sujo político, entre outros males, contribuem para criar uma sociedade doente.
E sociedades doentes tendem a desenvolver sintomas desagradáveis como a violência. E os sintomas não desaparecem enquanto a sociedade estiver doente. Não adiantam Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), investigações policiais, aumento de efetivo da polícia, criação de batalhões, metas de redução de crimes etc.
Nada disso melhora o sintoma, enquanto há um Estado desacreditado, uma grande desigualdade entre os cidadãos e uma população que acredita que a via adequada para se resolver problemas é a VIA ILEGAL.
A violência é apenas uma conseqüência...
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