domingo, 30 de maio de 2010

José Serra e a Bolívia: pré-candidato usa senso comum para atacar governo boliviano e angariar votos

Mas o que Serra não diz é que São Paulo é o principal hub da coca boliviana no país

O pré-candidato à Presidência da República do PSDB, José Serra, ganhou lugar sob os holofotes da mídia nos últimos dias por causa de uma revelação “bombástica”: Serra disse que a Bolívia é o grande responsável pelo tráfico de drogas no Brasil.

Bem, gostaria de tecer alguns comentários acerca da afirmação de Serra sobre nossos vizinhos. Na verdade, eu relutei em comentar esse assunto, porque achei que se tratava apenas de um factóide passageiro cuspido por um pré-candidato à Presidência para angariar apoio popular.

Mas, como percebi que José Serra estava insistindo muito nessa questão, resolvi fazer aqui uma reflexão sobre o assunto, até para que os eleitores desavisados saibam um pouco mais sobre esse assunto levantado pelo ex-governador paulista.

A primeira reflexão que tenho a fazer não se trata da Bolívia, mas do estado de São Paulo. Por quê? Acredito que seja importante situar o leitor sobre a real situação da cocaína no Brasil. Também acredito que o político, antes de criticar o terreno do vizinho, precisa se preocupar com seu próprio quintal.

São Paulo é considerado hoje o principal centro de distribuição de cocaína do Brasil, um verdadeiro hub do pó. Não só porque as drogas (e armas) fluem do Paraguai e da Bolívia (via Paraná e Mato Grosso do Sul) para o estado de São Paulo, mas porque a principal quadrilha atacadista de drogas do Brasil é paulista.

Hoje, criminosos do Rio de Janeiro, por exemplo, se abastecem principalmente em São Paulo, quando querem preencher seus estoques de maconha e cocaína. A constatação é do delegado da Delegacia de Combate às Drogas (DCOD) do Rio de Janeiro.

Isso significa que o governo de São Paulo foi e está sendo leniente para impedir o tráfico de drogas? Não necessariamente. O comércio das drogas, assim como comércio legal, atende uma lei básica: a oferta e a demanda. Se tem mercado para o consumo das drogas, haverá alguém vendendo.

São Paulo é um hub da cocaína talvez por causa de sua incômoda posição geográfica dentro do Brasil: faz limite com Paraná e Mato Grosso do Sul, dois principais estados de trânsito da droga boliviana.

A partir dessa facilidade geográfica (e certamente por inúmeros outros fatores), criminosos de São Paulo assumiram esse importante papel na cadeia comercial da cocaína: o de broker. Afinal, comerciantes do varejo precisam ser abastecidos para que possam vender seu produto ao consumidor final. Produtores precisam de intermediários para que seus produtos cheguem aos varejistas.

Agora voltemos à Bolívia. José Serra diz que a maioria da cocaína consumida dentro do Brasil vem do território boliviano, seja em forma de base ou em forma de sal (pó). E ele está correto quanto a isso.

Mas será que ele está certo quando diz que a Bolívia é responsável pela cocaína estar infestando as ruas e os narizes brasileiros ou quando diz que o governo boliviano está sendo “leniente” com esse comércio? Bem, a meu ver, ele está errado quanto a isso. José Serra está sendo ingênuo, simplista e impreciso ao fazer tais afirmações.

Vamos então analisar alguns dados das Nações Unidas e do Escritório de Controle de Narcóticos do Departamento de Estado norte-americano. A Bolívia é responsável apenas por 18% de toda a coca plantada no mundo (Peru e Colômbia respondem por 81%) e por 13% da cocaína produzida (Peru e Colômbia são responsáveis por 87%).

A fatia ocupada pela Bolívia no mercado total de produção de cocaína permanece praticamente estável desde 2004 (com altas e quedas de cerca de 5% de um ano para outro), assim como a área cultivada de folha de coca.

Ainda assim, o tamanho das plantações e da capacidade de produção da droga são consideravelmente inferiores àqueles apresentados na primeira metade da década de 90, quando a Bolívia tinha uma participação muito mais importante no mercado global de cocaína.

Os Estados Unidos, em seu relatório sobre o mercado global da droga deste ano, reconhece que a Bolívia tem atingido a meta de erradicação de plantações de coca estipulada pelas Nações Unidas, de 5 mil hectares por ano. No ano passado, a Bolívia erradicou 6.400 hectares.

Segundo dados da ONU e dos Estados Unidos, as apreensões de cocaína na Bolívia têm crescido ano após ano. No ano passado, teriam sido apreendidas 27 toneladas de cocaína, contra 9 toneladas em 2005, 13,5 toneladas em 2006 e 17 toneladas em 2007.

Os EUA também reconhecem que a Bolívia destruiu, apenas no ano passado, 24 laboratórios de cloridrato de cocaína (o pó), 4.800 laboratórios de coca base e 6.700 poços de maceração (a primeira fase da transformação da folha em droga).

No mesmo ano, policiais bolivianos prenderam 3.400 pessoas por envolvimento com o tráfico de drogas e o Estado processou 1.240 delas. Os números são bastante expressivos para um governo chamado de leniente por um pré-candidato brasileiro que parece não conhecer a realidade boliviana.

O que é mais interessante é que a Bolívia sequer precisaria empregar todo esse esforço. A Bolívia, a meu ver, teria todo o direito de ser leniente com o uso e o comércio da coca. Afinal, a coca faz parte da cultura andina há séculos.

O próprio presidente Evo Morales é um adepto da cultura cocalera. Ele mesmo é um líder cocalero e defende, no mundo, a legalização do comércio de folhas de coca.

Mas mesmo crendo que a coca não é maléfica e que ela nunca foi responsável por corromper sua sociedade, a Bolívia tenta jogar pelas regras dos Estados Unidos e da União Europeia e continua a combater o tráfico em seu país.

Como visto, a Bolívia contribui apenas com uma pequena fatia para a produção de coca no mundo. Nossos vizinhos Peru e Colômbia, de quem os Estados Unidos tanto gostam, têm um papel muito mais marcante no comércio da droga.

Os tamanhos das plantações e da produção de coca em Peru e Colômbia seguem a mesma tendência de estabilidade que na Bolívia (com exceção do ano de 2008 na Colômbia, que teve uma redução expressiva na produção de cocaína). Ambos países têm extensas áreas cultivadas com coca e produzem imensa quantidade de droga.

E mais: uma fatia considerável da cocaína produzida na Colômbia também entra no território brasileiro, apesar da maior parte dela ser remetida ao exterior.

Quer dizer que Peru e Colômbia são lenientes com o tráfico de drogas? Se são lenientes, por que então não há críticas aos governos de Alan García e Álvaro Uribe?

José Serra pode dizer que criticou a Bolívia porque é a cocaína boliviana que está intoxicando os brasileiros e não a cocaína peruana e colombiana.

Certo. Mas o fato da cocaína usada no Brasil vir da Bolívia é apenas acidental. Se não viesse da Bolívia, viria da Colômbia ou do Peru (aliás, parte da coca que chega ao Brasil pela Bolívia é plantada no Peru, já que os peruanos usam a Bolívia como entreposto).

O Brasil consome a cocaína boliviana porque ela é mais barata. A cocaína colombiana, bem mais refinada (fruto de um bem desenvolvido parque químico existente naquele país) e mais cara, é remetida à Europa ou aos Estados Unidos, onde pode ser vendida em dólares ou euros.

A Bolívia nunca desenvolveu bem seu parque de refino de cocaína, até porque durante muitos anos, na época de ouro dos cartéis colombianos, a coca boliviana era remetida à Colômbia para ser refinada e transformada em cloridrato.

Com isso, a Bolívia se especializou em produzir a coca-base e uma cocaína de menor qualidade. E o pior: essa droga barata encontrou um mercado promissor no Brasil. Não porque os traficantes bolivianos quisessem nos intoxicar, mas porque os próprios brasileiros queriam se intoxicar. De novo, a velha lei da oferta e da procura.

Se os consumidores brasileiros quisessem uma cocaína melhor ou estivessem dispostos a pagar melhor pela droga, estaríamos consumindo o pó colombiano, assim como fazem os americanos e os europeus. Nesse caso, a Bolívia estaria talvez explorando outros mercados ou tentando melhorar a qualidade de seu produto.

Enfim, se a droga boliviana está infestando o Brasil, a culpa é da Bolívia? Respondo isso com outra pergunta: se a cocaína está infestando os morros cariocas, a culpa é dos atacadistas de São Paulo?

Gostaria muito que o senhor José Serra refletisse e respondesse a essas perguntas numa próxima ocasião...

2 comentários:

  1. Rs... André, a questão não é gostar ou não do Serra... A questão é que ele falou algo incorreto...

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