A surpreendente queda generalizada dos crimes no Rio de Janeiro tem sido recebida com muita festa pela imprensa carioca e, conseqüentemente, pelos mais variados setores da sociedade, inclusive por alguns especialistas na área de segurança pública.
A queda é surpreendente não só porque envolve os mais variados crimes (homicídios, roubos de rua, roubos de veículo etc.), mas principalmente porque os dados mostram uma redução generalizada, em todo o estado (e não apenas em regiões específicas), e com um índice de queda milagroso (em média de 20% nos principais crimes).
Para ser mais específico, a estatística que mais me surpreende é a relacionada à queda dos homicídios na cidade do Rio de Janeiro. No primeiro trimestre deste ano, os assassinatos na cidade teriam caído 22%, segundo os dados do Instituto de Segurança Pública (ISP). Isso mesmo 22% (segundo números absolutos).
Só para se ter uma ideia de como essa queda é assombrosa, vou fazer uma comparação singela. A cidade de Nova York (EUA) dos anos 90 é conhecida como um paradigma de sucesso na área de segurança pública, por ter conhecido passar de uma taxa de homicídios de 30,1 por 100 mil habitantes em 1991 para uma de 8,5 por 100 mil em 1998.
O período entre 1994 e 1995 foi aquele em que a cidade de Nova York teve a maior queda de homicídios naquela década. Nesse período de maior sucesso da redução dos assassinatos a taxa de queda foi de 24%.
Entenderam por que estou fazendo essa comparação? Nova York, no auge de sua luta contra o crime reduziu em 24% seus homicídios (depois de três anos com quedas sustentáveis). O Rio de Janeiro, segundo os dados do ISP, conseguiu, de repente, diminuir em 22% seus homicídios, depois de um 2009 com alta nos homicídios.
Uma queda tão assombrosa como essa (que, como se viu, se compararia à de Nova York dos anos 90) obviamente levanta suspeitas sobre a veracidade dos números apresentados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), principalmente porque, ao contrário do que aconteceu na cidade norte-americana, não houve nenhuma mudança significativa na essência das nossas políticas de segurança.
Devo dizer que eu sou um dos céticos quanto à veracidade desses dados. Comecei a desconfiar dos dados do ISP depois que os índices de criminalidade do segundo semestre do ano passado começaram a ser divulgados.
E vou explicar o porquê. O ano de 2009 foi um ano peculiar para a segurança pública no Rio de Janeiro. Entre 2005 e 2008, o Rio seguiu uma tendência nacional, experimentando quedas sucessivas variando entre 3% e 6% nos homicídios nesse período.
No primeiro trimestre de 2009, a tendência foi subitamente revertida com uma alta de 8% no número absoluto de homicídios. No segundo trimestre daquele ano, o aumento foi ainda maior: 16%.
Nesse período, a Secretaria de Segurança resolveu adotar uma nova medida, teoricamente para melhorar os índices de criminalidade do Rio de Janeiro: o estabelecimento de metas para a redução dos homicídios no estado.
Segundo essa medida, os policiais precisavam reduzir os índices de quatro crimes (entre eles, os homicídios em 11%). Em troca, as delegacias e batalhões com menos crimes ganhariam gratificações da Secretaria. Ou seja, o recado era claro: policiais que registrassem menos crimes a partir de julho de 2009 ganhariam mais dinheiro.
Então, começa o milagre. Sem qualquer mudança drástica na política de segurança do estado, os homicídios curiosamente caem 8% logo no terceiro trimestre de 2009 (o primeiro desde a implantação do sistema de metas). No quarto trimestre, queda milagrosa de 16%.
Ou seja: tivemos aumento de 16% no segundo trimestre de 2009. No quarto trimestre, a redução é de 16% (15,6% para ser mais exato). Em três meses, o estado do Rio opera um milagre semelhante ao que Nova York demorou três anos para conseguir.
Chega então o ano de 2010 (o ano da eleição, em que o atual governador busca se reeleger) e o milagre se mantém. Queda de 17% nos homicídios do estado do Rio e de 22% na capital fluminense. Reduções milagrosas também se operam nos crimes de roubo, por exemplo.
Tanto milagre acontecendo em tão pouco tempo... Isso foi me deixando com uma postura cada vez mais cética em relação aos dados do ISP, órgão ligado à Secretaria de Segurança do estado. Até porque a idoneidade do ISP já foi colocada em dúvida pela própria ex-presidente do Instituto, Ana Paula Miranda, que, em 2008, já fora do cargo, levantou suspeitas sobre a queda de homicídios apresentada na ocasião.
A própria saída de Ana Paula Miranda da presidência do ISP foi rodeada de uma série de especulações de que a Secretaria de Segurança queria ter mais controle sobre os dados que estavam sendo divulgados pelo instituto.
Quero deixar claro: não afirmo que o Instituto de Segurança Pública ou os policiais estejam forjando dados para melhorar a imagem do governador ou para melhorar seus salários.
Eu, como jornalista e analista da área de segurança pública, trabalho com dados, com fatos. Qualquer afirmação no sentido de manipulação dos dados pelas autoridades de segurança, nessa altura do campeonato, é mera especulação.
Mas suspeitar de que os dados estejam sendo manipulados é completamente legítimo. Até porque há indícios (como os mostrados acima) de que esses números podem estar errados. Não há provas (ainda), mas existem indícios de que há alguma coisa esquisita com as estatísticas de criminalidade do Rio de Janeiro.
Como disse, não houve mudança no paradigma de segurança do Rio, que possa explicar uma queda generalizada, na maioria das regiões do estado. Podem me perguntar: E as Unidades de Polícia Pacificadora?
As UPPs são uma política específica de alcance geográfico restrito (pelo menos enquanto houver pouquíssimas UPPs como há hoje), cujo resultado se sente apenas na favela onde ela está instalada e no entorno imediato.
O próprio secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, em coletiva à imprensa para apresentar os dados do segundo semestre de 2009, não quis atribuir a queda daquele período às UPPs (que na época eram ainda mais restritas do que são hoje). Até março deste ano, só havia UPPs na zona sul, que é justamente a área menos violenta da cidade, na Cidade de Deus e no Batam.
Podem me perguntar ainda: e o combate às milícias? Devo reconhecer que a atual gestão da Secretaria de Segurança foi a primeira a combater milícias (ainda que esse combate tenha sido restrito e voltado principalmente ao grupo chamado de Liga da Justiça).
Mas o combate às milícias também teria tido apenas um efeito geograficamente restrito à área onde a milícia era mais forte: Campo Grande. Não é possível explicar, por exemplo, a queda de homicídios apresentada, desde o segundo semestre de 2009, nas áreas do 16o Batalhão (Olaria, Penha e Complexo do Alemão) ou em Duque de Caxias.
Certo, e a nova Delegacia de Homicídio? A nova delegacia de homicídio teoricamente traria uma melhoria nas investigações e, conseqüentemente, na taxa de elucidação de assassinatos no Rio. Mas a nova DH só foi inaugurada em janeiro deste ano. Não explicaria as quedas das taxas do ano passado, que continuam neste ano.
Ok, e a implantação das Regiões Integradas de Segurança (RISP), que supostamente melhoraram a comunicação e a busca de objetivos comuns entre a Polícia Militar e a Polícia Civil? Bem, quanto a isso, eu concordo que poderia trazer benefícios para a segurança pública no Rio.
Mas acho que isso, por si só, não poderia explicar uma redução tão rápida e tão acentuada como a que aconteceu. O anúncio do sistema de metas e da criação das RISP foi feito no final de junho. Em julho, já havia tido uma queda de 4%, depois de uma alta de 9% registrada no mês anterior.
Nenhuma política de segurança diferente adotada pela Secretaria de Segurança pode explicar a queda meteórica dos homicídios e dos roubos.
Ou seja, ainda que a queda dos índices criminais seja verdadeira (e não uma manipulação do ISP ou dos policiais), ela não pode ser simplesmente explicada pelas políticas de segurança adotadas pelo governo do Rio de Janeiro.
Talvez seja apenas uma calmaria temporária provocada por um fator independente da vontade das autoridades de segurança pública, tais como, equilíbrio de forças entre as quadrilhas, acordo entre os criminosos, supremacia de uma quadrilha sobre outra, estabilidade da hierarquia dentro das quadrilhas ou até redução do ímpeto violento dos novos chefes de quadrilha.
Tréguas temporárias na violência não são incomuns e já aconteceram em locais como a Colômbia. Nesses períodos, em geral, tem-se a sensação de que a sociedade está em paz e que a violência não voltará a acontecer.
Mas basta que cesse um dos fatores garantidores da calmaria para que um novo ciclo de violência se inicie, geralmente com um banho de sangue.
Enfim, para terminar esse longo texto, gostaria de defender duas coisas. A primeira é que seja feita uma investigação sobre os dados de criminalidade divulgados pelo Instituto de Segurança Pública.
Meu segundo pedido é: caso os dados se comprovem verdadeiros, que as autoridades de segurança investiguem o motivo da redução do crime no Rio de Janeiro, para que se possa entender o que está acontecendo e evitar que a calmaria vire novamente um banho de sangue.
sexta-feira, 14 de maio de 2010
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