quarta-feira, 19 de maio de 2010

O Bope e a furadeira: O caso do cidadão condenado a morte pelo crime de porte ilegal de um eletrodoméstico

Policiais militares do Batalhão de Operações Especiais assassinaram hoje um morador do Morro do Andaraí. Segundo versão divulgada pela imprensa, um policial teria confundido o morador com um bandido, porque a vítima estava com uma furadeira eletrica na mão, na janela.

Por isso, o policial assassinou o cidadão de 46 anos. O episódio é tão absurdo que eu juro não saber por onde começar. Mas vamos lá. Começo pela seguinte pergunta: Por que o policial atirou nele? Se o morador estava com uma furadeira elétrica, certamente não estava atirando no policial.

Logo, minha primeira conclusão é que o policial atirou no cidadão sem que fosse em legítima defesa. O tiro foi disparado sem que o cidadão oferecesse qualquer ameaça ao policial.

E aí vem minha segunda conclusão sobre o episódio. O policial atirou no cidadão porque pensou que ele estava armado. Essa me parece ser uma desculpa comum usada por policiais ao assassinar, por engano, pessoas inocentes no Rio de Janeiro.

Só que, a meu ver, essa desculpa não tem nenhum cabimento. Ainda que o cidadão estivesse armado (o que obviamente não era o caso), o policial não poderia atirar contra ele.

A pena para o porte ilegal de arma de fogo, segundo a lei brasileira (Lei 10.826/2003), é reclusão de dois a quatro anos, não a pena de morte (que aliás é proibida por nossa Constituição Federal). A pena aumenta para reclusão de três a seis anos, se for arma de uso restrito.

Procedimento padrão: dar voz de prisão, prender o suspeito e encaminhá-lo à Delegacia, onde ficará à disposição da Justiça (para que seja julgado e, se condenado, receba uma das penas acima). Pelo menos assim funcionaria num Estado Democrático de Direito.

Mas não é bem assim que acontece aqui no Rio de Janeiro. Voz de prisão é um último recurso, quando não dá para matar o bandido.

A questão é que, como muitas das vítimas são mesmos bandidos, os policiais acabam não enfrentando problema nenhum com a Justiça, ainda que tenham cometido um assassinato (morte sem confronto ou sem ameaça explicita a vida do policial).

Arriscaria dizer que assim ocorrem muitos autos de resistência. Ou seja, é assim que morrem muitas pessoas no Rio de Janeiro pelas mãos da policia. Sejam elas bandidos, que são mortos sem que sequer saibam que estão em confronto com a polícia (sendo atingidos pelas costas, surpreendidos por policiais que furtivamente se aproximam de seu alvo ou simplesmente baleados por um policial assustado), sejam elas pessoas inocentes.

E o problema surge justamente quando um cidadão de bem, trabalhador, pagador de impostos é assassinado por homens cujo salário ele ajudou a pagar. Só então a sociedade se revolta.

Não estou querendo dizer que esses assassinatos cometidos por policiais sejam execuções premeditadas (apesar de algumas delas o serem). Tampouco estou querendo dizer que a culpa é apenas do policial.

O que quero dizer é que esses policiais são submetidos cotidianamente a uma situação de pseudo-guerra por seus superiores. São colocados diariamente para entrar num território hostil, um teatro de operações labiríntico e sufocante, onde há criminosos escondidos em cada esquina dispostos a matá-los para defender seus negócios (e, às vezes, sua propria vida).

São colocados em operações mal-planejadas, onde balas de fuzis e metralhadoras zunem a todo instante em seus ouvidos (disparadas por adversários melhor posicionados no campo de batalha). São orientados por seus superiores a eliminar qualquer ameaça, antes que sejam eliminados. São preparados em seus batalhões para serem os novos rambos tupiniquins. São armados com as mais potentes e letais armas disponíveis.

Em meio a um cenário como esse, o que esperar de policiais que vêem um pacato cidadão aparecer em sua janela com uma ameaçadora furadeira elétrica?

Dar voz de prisão? Esperar que ele aponte a arma para mim? Esperar que ele atire contra mim? Esperar ser atingido para reagir? “Que nada”, pensam os policiais, “estamos numa guerra. Todo mundo fala isso: a imprensa, o meu comandante, os meus colegas, o meu secretário, o lunático apresentador de TV, o governador... Ou é ele ou sou eu. Prefiro que seja ele. Se for um simples cidadão, exercendo seu direito de consertar sua casa com uma furadeira, azar o dele”.

Como disse, é comum no Rio de Janeiro que policiais atirem em pessoas mesmo antes que essas pessoas apresentem qualquer ameaça. Hoje mesmo, antes de matar o cidadão com a furadeira, a polícia baleou duas pessoas. Segundo a imprensa, eles foram atingidos porque estavam atirando contra a polícia. Só que, estranhamente, apenas uma pistola e uma granada foram apreendidos, de acordo com a imprensa.

Ora, não me venham dizer que um dos suspeitos estava atirando na polícia com uma granada. Ainda não inventaram uma granada que dispare projéteis como pistolas. E tampouco venham me dizer que ele ameaçava os policiais com uma granada. Se o cidadão estivesse ameaçando jogar uma granada na polícia, a granada teria explodido, porque, para atirar o explosivo, ele precisa retirar o pino.

O que me leva a crer então que os dois bandidos estavam revezando na pistola (“peraí, Zé, você já deu um tiro, agora é minha vez de atirar nos Pêeme”... improvável, né?), ou os policiais assassinaram um deles fora do confronto.

E por incrível que pareça, ocorrências como essa (em que o número de armas apreendidas é menor do que o número de baleados por policiais) são bastante comuns. Basta prestar atenção nas matérias de jornal.

As autoridades de segurança (incluindo o governador) precisam ter mais cuidado com as ações policiais. Confundir-se não é desculpa. Por causa dessa política imbecil de fomentar a violência policial inúmeros inocentes já morreram (lembram-se do menino João Roberto na Tijuca?) e o próximo pode ser você. O próximo posso ser eu ou algum familiar meu. Minha avó mora no Morro do Andaraí e eu a visito com frequência.

Para finalizar: o governador e seu secretário de segurança precisam parar de incentivar o confronto policial e devem ser responsabilizados quando fatalidades como a de hoje ocorrerem (os dois são os comandantes-em chefe da polícia). Os policiais precisam ter cuidado ao atirar, justificar cada projétil que sai de suas armas e ser responsabilizados quando essas fatalidades ocorrerem. Operações policiais precisam ser restringidas ao máximo. A Corregedoria, as delegacias e o Ministério Público precisam investigar as mortes provocadas direta ou indiretamente pela polícia.

Mortes por engano, assassinatos, execuções e balas perdidas envolvendo agentes do Estado precisam acabar.

3 comentários:

  1. Vitor,

    Olha só o que um coronel aposentado da PM escreveu:

    "Em qualquer parte do mundo uma guerra urbana como a do Rio conduz a risco iminente a população civil, produzindo vítimas inocentes, como tem sido noticiado constantemente com relação a vítimas de balas perdidas. Uma furadeira nas mãos, a uma certa distância, pode de fato, observado o momento ardente da intervenção policial, dar a impressão de que se trata de uma sub-metralhadora, onde a vida do policial passa então a risco iminente. A legítima defesa putativa talvez se aplique ao caso."

    Destaca-se a mentalidade de guerra e as peripécias jurídicas ("legítima defesa putativa") para livrar a cara do assassino.

    Sempre chamei isso de assassinato mas não me levam a sério, falam que é defesa de bandido.
    Lembro que no caso do menino João Gabriel, militares quiseram colocar a culpa no Insul-Film do carro.

    É uma total inversão de valores apoiada por oficiais, delegados, secretários, governador e imprensa.

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  2. Concordo plenamente com o q vc disse. Nao concordo com a tese da legitima defesa putativa. Para mim, o policial precisa ser julgado como se tivesse cometido um assassinato. Mas creio q o policial não eh o unico (mto menos o principal) culpado. Toda a cadeia hierarquica precisa ser responsabilizada criminalmente, em ordem crescente de responsabilidade: o policial que atirou, o comandante da operacao, o comandante do batalhão, o comandante da PM, o secretario de seguranca e o governador do estado. Assim como num crime comum, se busca o mandante do assassinato, num crime cometido pelo agente do Estado, este padrao deveria ser seguido.

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  3. Querido copiei um trecho do seu texto para o "minhas aspas".
    Assino literalmente embaixo do que vc escreveu aqui!

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